Dias de crise
 
          Tem dias, realmente tem, em que os efeitos da crise se tornam maiores. Isso acontece quando a gente descobre que tudo só pode piorar. Não há jeito de melhorar simplesmente porque não existe retorno. É quando percebemos que o fogo está apagando e já não há como reavivá-lo. É quando percebemos que são as lembranças mais distantes que estão vindo a nossa mente e que são também as mais irremediáveis. É quando olhamos para frente e descobrimos que já vivemos a maior parte de nossas vidas e que o futuro incerto está cada vez mais certo. Já não existem muitos sonhos a serem alcançados e os alcançados estão tão distantes que nem nos lembramos de como os perdemos. Estando bem acordados sabemos que se aproxima o sono final e que esse sono será sem sonhos. Não, a vida não é sonho, a vida é vida e o melhor dela já está perdido. Onde foi que errei? Onde foi que perdi o controle da vida e fui arrastado por ela como um papel velho carregado pela enxurrada das tempestades de verão? Não há mais como voltar aquele tempo do qual nos apartamos, por falta de diálogo, de cantar aquela música da qual sabíamos a letra de cor porque fazia parte de nossa vida. Terá essa música realmente existido ou é apenas uma lembrança criada pela imaginação? Havia uma música e quando essa música tocava o meu coração quase parava de tanta emoção. Não, não temos mais vinte anos, nem trinta. E logo nem mesmo seremos ou seremos outra coisa qualquer. Talvez pó, simplesmente pó.

          É então que compreendemos que o que não tem remédio, remediado está. Que as lágrimas que choramos pelo leite derramado estão secando nossos olhos antes que seja à hora do final. Não dá para fazer de contas que temos vinte anos e que podemos fazer as coisas que fazem as pessoas que têm vinte anos. É nessa hora também que nos vem o pensamento consolador: será que eu queria fazer as coisas que eu fazia aos vinte anos? Será que eu queria percorrer esse mesmo caminho outra vez só porque ele está mais distante do fim? Não seria como caminhar em direção a algum lugar e no meio do caminho voltar e recomeçar o caminho outra vez? Ou como tentar passar um diário a limpo, um diário já nas últimas páginas, quase completamente preenchido, como se mudando as palavras mudássemos também o destino?

           Sejam quais forem as perturbações que desencadeiam essas crises que ocasionalmente temos, já que as teremos outras vezes ainda, de acordo com as estações da vida, convém lembrar que chegou a nossa vez e que a vez deles, os que vêm atrás de nós também chegará porque é assim que acontece desde todos os tempos. Existe uma fila, desde Adão e Eva, e essa fila só faz crescer e como o espaço é pequeno para tantos fragmentos divinos enfileirarem-se haverá sempre o momento que muitos desaparecerão voltando a sua origem, talvez para entrar novamente na fila e começar tudo de novo. Talvez, mas nem isso é certo. Pode ser que ao alcançar o primeiro lugar da fila a gente simplesmente evapore. Mas é bom manter a esperança porque esse será o único jeito de voltar a ter vinte anos, mas depois tudo será como antes, a eterna vida em seu eterno ir e vir. Moto Perpétuo. 

         Existe certa vantagem em se atingir a maturidade. Como já vivemos um longo passado sabemos com mais convicção que tudo passa inclusive as chamadas crises existenciais. Sabemos que não há nada a fazer senão esperar. E então podemos debruçar-nos a janela e contemplar o mundo que nos cerca, olhar para a infinitude celeste onde brilham as estrelas e reina a lua em seu passeio mágico através das nuvens. E nessa contemplação do eterno e absoluto sentiremos o coração ser inundado por um mar de bem aventuranças que aos poucos vão colocando a crise no chinelo. E ao baixar nossos olhos sobre os passantes, caminhando ou rodando, sentiremos uma infinita piedade daqueles que ainda não puderam atingir essa compreensão. E uma ternura afetuosa por todos aqueles que vivem hoje caminhos que já vivemos esperando com sinceridade que possam trilhar essa passagem fazendo do mundo um lugar melhor do que nós conseguimos fazer.