HILDEGARD VON BINGEN
“A alma é uma sinfonia.”
Hildegard von Bingen
A leitura da história da música e dos compositores me deixa intrigada. Tantas intérpretes e quase nenhuma referência quanto às compositoras. Um vazio feminino no universo divino da padroeira Santa Cecília. Longe dos verbetes, descubro o nome de Hildegard von Bingen, monja beneditina que viveu no século XII, compositora que fez mais de setenta sinfonias e que achava que a música era uma forma de readquirir a divindade perdida quando Adão saiu do Paraíso.
Encontro num sebo o livro Hildegard de Bingen (A consciência inspirada do século XII), de Régine Pernoud, e empreendo uma longa viagem no tempo, às sombras da Idade Média, período das cruzadas, para encontrar a primeira grande compositora de música. No claustro, o encontro com a voz libertadora. Na contemporaneidade, o resgate de sua obra por Christopher Page.
Décima filha de uma família nobre, Hildegard foi para o mosteiro dúplice Disibodenberg para ter educação religiosa com oito anos. Monja beneditina teve sempre sua vida marcada pelas horas nonásticas e pelos cantos em louvor a Deus.
Tornou-se abadessa e teve a vida marcada por visões, ouvia a voz divina e desenhava mandalas com as imagens: um homem no centro do globo (mundo), espelhos, asas, muros... As mensagens que a visionária recebia não eram guardadas no claustro, Hildegard as escrevia em livros e fazia pregações e sermões públicos. A última visão do livro Scivias, escrita como peça teatral ou ópera, inspirou a obra musical Ordo Virtutum, onde as virtudes são personificadas e sofrem ataques dos demônios.
“Assim, o homem é o fecho das maravilhas de Deus.”
Hildegard denunciava a corrupção da Igreja, os falsos padres, a luxúria, os surgimento de novas seitas no cristianismo que enfatizavam o dualismo e o maniqueísmo, a riqueza ostensiva do clero. Suas palavras despertaram paixões e polêmicas por toda a Europa, com sua concepção inovadora da relação do homem com o cosmo e do papel da mulher com plena participação na vida do Espírito.
Não foi apenas na música e na teologia que a abadessa Hildegard von Bingen se destacou. A monja escreveu dois trabalhos sobre medicina, mostrando um vasto conhecimento sobre plantas medicinais. Os livros que escreveu são os mais conhecidos tratados sobre medicina no ocidente durante o século XII. Uma de suas grandes preocupações clínicas era a cura da melancolia que perigosamente solapava a “viridez”.
Os últimos anos de sua vida foram marcados por um incidente trágico. O enterro de um revolucionário que havia sido excomungado gerou a interdição do mosteiro Rupertsberg e a proibição de celebrar os cânticos de louvor divino. O arcebispado de Mayence impôs que o defunto fosse desenterrado, mas a abadessa Hildeberg von Bingen, após ter uma visão, recusou-se a cumprir a ordem, pois afirmava que o morto havia morrido em plena comunhão com Deus e que havia recebido todos os sacramentos.
Durante a interdição do mosteiro, Hildegard von Bingen escreveu uma carta aos prelados com a história reconstituída do enterro realizado sem contradição com todos os sacramentos, a descrição de sua visão e um grande elogio à música.
“O corpo, com efeito, é vestimenta da alma que tem uma voz viva, e é por isso que é conveniente que o corpo cante com a alma, pela voz dela, os louvores a Deus. Do que resulta que o espírito profético ordene expressamente que Deus seja louvado pela alegria dos címbalos e por outros instrumentos de música que sábios e estudiosos inventaram, pois todas as artes úteis e indispensáveis aos homens provêm desse sopro de espírito que Deus insuflou no corpo do homem; e é por isso que é justo que todo o tempo eles louvem a Deus. E, posto que o homem ao ouvir certos cantos às vezes suspira e freqüentemente geme, recordando a natureza da harmonia celeste em sua alma, o profeta, considerando e conhecendo a natureza do espírito – posto que a alma é de natureza sinfônica -, exorta-nosno slado que cantamos com a cítara e salmodiamos com o desacordo.”
Hildegard von Bingen é o exemplo de uma grande mulher que compõe, com o tempo e os contextos históricos, a narrativa sublime da humanidade.