VOCAÇÕES

Ele tinha nascido alí, na zona rural, onde os pais residiam, se ocupavam cuidando da terra, plantavam, criavam suas galinhas e porcos, e como todas as pessoas nativas daquelas localidades, não se atreviam a sonhar com outras possibilidades de moradia e trabalho em regiões que pudessem se distanciar muito dos seus próprios quintais.

Além das influências geradas pelos costumes locais, incomodava-o o desejo oculto e não menos insistente de fazer algo diferente, sair daquele círculo vicioso: Enxada, Foice, Roçado.

Um outro fato aguçava-lhe a curiosidade: “Jazia sobre um velho armário em um dos quartos da casa, vigiado com rigor, um objeto absolutamente proibido, cujo porte ou qualquer atitude de aproximação em relação a ele, lhe era terminantemente negado pelo pai, um descendente de portugueses irredutível e durão”.

Não passava pela cabeça daquele moço qualquer ato de rebeldia, mas, num dia muito especial não conseguiu evitar o desejo incontrolável de conhecer de perto aquele instrumento e às escondidas, o tirou de cima do móvel e o levou para além dos fundos do quintal, bem lá no meio de bananeiras e pocilgas de porcos (numa atitude de moleque arteiro que pratica suas travessuras à revelia de um consentimento paterno), e finalmente pode admirá-lo com olhar hipnotizado, tocá-lo com mãos rudes , calejadas, e pela primeira vez em sua humilde existência, produziu sons, ouviu-os, e se emocionou como nunca havia se emocionado antes.

Naquele dia, parecia-lhe que a natureza tinha se tornado mais bela e generosa, ficou conhecendo uma “Viola Portuguesa de Dez Cordas”, mágica, apesar de todo o mistério e proibição , com uma sonoridade diferente dos violões e sanfonas reinantes nos pequenos arrasta-pés que rolavam naquelas paragens, e que lhe respondia aos movimentos das mãos com notas melodiosas e delicadas, que por sua vez nada tinham a ver com o ruído metálico e frio de lâminas de enxadas e foices a ceifar o mato ou cavar o solo duro durante as madrugadas úmidas ou dias quentes.

Era o renascimento daquele caboclinho, que além do mais, acabava de inaugurar um estúdio natural e particular para pesquisas secretas e autodesenvolvimento de técnicas de aprendizado de uma Viola Caipira, de forma absolutamente auto-didática, que se repetiu por muito tempo, sem o conhecimento do velho pai, que ao acordar tardiamente para o fato, encontrou-se com um novo e definitivo músico Violeiro na família.

A reboque, e durante o resto de sua vida, vieram o Violão, o Banjo, o Bandolim, a Viola Americana (Dinâmica), a Sanfoninha de Oito Baixos e finalmente o Cavaquinho.

Revelava-se então o artista que mais tarde se tornou meu Pai, Ídolo e Mestre , excelente músico em instrumentos de corda, que infelizmente precisou deixar a Roda de Cantoria antes do combinado.

Dia destes um amigo falava-me de sua preocupação e dificuldade em administrar o desejo de seu filho, adolescente ainda, em aprender a tocar um instrumento, uma vez que essa “mania” pudesse ser passageira e de certa forma interferir em processos outros no desenvolvimento natural e previsto para o jovem.

Na dúvida sobre aconselhá-lo diretamente, e não querendo assumir responsabilidades, contei-lhe a história acima, do meu Pai Jovercino ( o Bebém do Cavaquinho), na esperança que ele entendesse o fato relevante de que ao músico nato não é dado o direito de escolher a Música...ela nos alcança mais dia menos dia, arrebatando-nos, quer queiramos ou não, e nos tornando seus felizes e fieis escravos, se não coadjuvantes, pelo menos apreciadores apaixonados, nos oferecendo sabores diferentes em pratos variados para satisfazer as nossas preferências.

Aos filhos, amigos ou seja lá quem se sinta atraido pelo mundo mágico da música, das artes em geral, o nosso incentivo e constante torcida para que se tornem novos magos na gloriosa missão de encantar-se e encantar a todos.

Saudações violeiras, até a próxima e um grande abraço à todos.