Apenas Severina
Lugar de sonhos realizados é em São Paulo. Lugar para ninguém ficar desempregado é em São Paulo. Lugar pra se fazer a vida sem tanta penúria é em São Paulo. Esses eram os comentários que ouvíamos diariamente da boca de quem ouviu falar, de quem veio de lá, de quem tinham parentes lá. Todos acreditavam piamente nisso. Assim todos os projetos, fossem dos jovens, fossem dos adultos, eram: um dia irei para São Paulo.
Seu Ferreira, seu Antônio, seu Manoel, seu Severino, tinham ido e ¨todos ficaram bem de vida¨, então o negócio era juntar dinheiro e ir embora desse lugar que não oferece muita coisa para seus filhos.Ninguém duvidava de que esse era o caminho para a prosperidade. E mesmo aqueles que não desejavam ir, incentivavam os outros para que saíssem dessa para melhor, nem que seja por alguns anos, ¨dispoi iocês vorta e aí cum dinheiru nu borso a coisa é outra¨. ¨Pra qui ficá aqui qui nem futuru se vê?¨
Muito jovem, alta, magra, cor de canela, boa aparência, Severina também era uma das que faziam parte do grupo que acreditava nessa quimera. Estudou até o segundo grau, tinha alguma experiência em Comércio. Tinha trabalhado em farmácia; também tinha registro em carteira como auxiliar de escritório. Havia feito vários cursos profissionalizantes pelo Senac, e pra vista de muitos nordestinos achava que ao chegar lá tudo seria mais fácil, porque ela era mais ¨preparada¨.Pura ilusão.
Viajou cheia de sonhos, mas com pouca experiência de vida. Nada conhecia da cidade grande. Mas foi com a cara e a coragem. Durante a viagem sofreu abuso de um passageiro que sentou ao seu lado. Não conseguia dormir, o velho queria uma casquinha. Dois passageiros perceberam e ofereceram-se para ajudá-la, ela temendo passar por mais vexame, pediu pra ficar no banco do corredor. Eles aceitaram. Só quem não gostou da permuta foi o velho que passou a ter por companheiro um macho. E claro que com macho ele não queria nada.
No ônibus a conversa era uma só: mudar de vida, arrumar emprego, juntar um dinheirinho. Havia aquele que seu irmão mandara lhe buscar e já tinha um serviço garantido. Outro estava indo passar as férias com uma tia, e se arrumasse emprego, ficaria de vez. Uma outra passageira estava indo como recém-casada, pois havia casado por procuração e seu esposo, que dias antes era seu noivo, não o via há quatro anos. Uma passageira estava indo com três filhos pequenos, e mais um na barriga; o esposo fora na frente e tinha alugado um barraco. Esta coitada acreditava que sua vida iria mudar a partir do momento que colocasse os pés naquela ¨Terra abençoada¨.
Com os rapazes também não era diferente: nas paradas iam conversando com Severina, e cada uma tinha uma história triste e muito sonho para realizar quando chegasse a São Paulo. Um era casado, havia deixado a mulher e um filhinho pequenino na certeza de que em breve estariam juntos novamente. O outro solteiro, desejava muito trabalhar juntar dinheiro e ¨fazer a vida¨lá,pois de onde ele vinha não havia emprego. Ambos eram homens que zelavam pelas calças que vestiam. Quanto ao velho não perdia uma oportunidade para se aproveitar de qualquer rabo de saia que aparecesse à sua frente. Lá na minha terra, todos diriam numa só voz: Êta, velho inchirido!, disse Joaquim, um dos moços.
Perguntaram se haveria alguém à espera de Severina na Rodoviária, no que ela disse que sim. Depois receosa disse que sua prima havia dito que iria, porém ela não tinha certeza, pois não voltaram a entrar em contato, que por sinal tinha sido por carta. Eles prontamente se ofereceram para ajudá-la no que fosse preciso. Caso não tivesse ninguém para recebê-la, ela iria com eles, e no dia seguinte iriam levá-la até o endereço que ela tinha na bolsa, guardado como um tesouro, pois daquele pedaço de papel dependia sua sobrevivência e permanência em São Paulo.
Toda viagem foi um deslumbramento para Severina. Depois que mudou de poltrona, pôde admirar a paisagem. Encontrou muitas estradas esburacadas, mas também ficou de ¨queixo caído com a ¨grandeza ¨das Minas Gerais, daqueles ¨ paredões que não acabavam mais¨: da Bahia, não gostou muito, teve uma triste experiência: ali se deparou com algumas baianas que pediam um trocado, mas quando ela se negou a dar, elas começaram a falar numa língua maldita, soltando toda sorte de ¨maldição¨para a pobreSeverina. Ela claro, pediu a Deus pra sair daquelas terras. O Rio de Janeiro não lhe mostrou a ¨cara¨, porque já estava escurecendo e chovia pra valer.Era um aguaceiro, que no Nordeste faria a alegria dos retirantes.
Quando chegaram a São Paulo já era noite fechada. Quando desceu na Rodoviária estava apreensiva, olhava para todos os lados esperando ver o rosto conhecido da sua prima; temia ter que ir para um lugar que não conhecia, com pessoas que travara contato apenas no ônibus, e apesar de terem um comportamento exemplar, nunca se sabe as surpresas da vida, pensava ela com seus botões. Pra sua alegria e total alívio sua prima ali estava e a aguardava com um belo sorriso.
Severina se despediu dos novos amigos, agradeceu pela ajuda e trocaram endereços.
Começou sua batalha por um emprego no dia seguinte. No primeiro dia sua prima lhe levou para um lugar onde havia uma grande empresa. Severina preencheu uma ficha, mas nos dias que se seguiram teve que se virar sozinha. Mas conseguiu se sair bem. Conseguiu emprego na primeira semana, parecia que tudo confirmava o que no nordeste diziam sobre a grande São Paulo, porém não lhe disseram que emprego havia, mas era preciso acordar de madrugada, gastavam-se umas três horas no mínimo para se chegar ao local de trabalho e que a noite quando se chegava em casa era por volta da meia noite. E no dia seguinte tinha que acordar novamente às quatro horas e sair sem demora para não perder o único ônibus às cinco da manhã. Se assim não fizesse chegaria tarde no trabalho, com certeza ficaria na vista dos chefes. Na hora de demitir, eles não pensariam duas vezes por quem chegava tarde.
No primeiro dia de trabalho, quando chegou a hora da saída, colocaram os funcionários para passarem numa catraca, e quando uma luz ficasse vermelha, aquele funcionário teria que ser revistado. E pra sua infelicidade e vergonha, ela foi a escolhida. Entrou naquela sala de cabeça baixa, uma funcionária de maior graduação a esperava para lhe fazer a revista. Percebendo que Severina estava em estado de choque, avisou-lhe que abrisse alguns botões, puxasse a blusa para fora das calças e ao sair, simulasse que havia sido revistada. Severina não abriu a boca, balançou a cabeça, fez o que a chefe mandou e saiu dali segurando o choro. Que vergonha, meu Deus! Todos olhando para ela. Havia mais de duzentos funcionários ainda para passar na catraca. E quando um entrava para a revista, a fila parava. Uma verdadeira tortura.
Aprendeu rápido o serviço. Seu caixa era o mais rápido e o que não dava erro. O gerente começou a cismar. Mandava sem nenhum aviso, fechar o caixa e colocava tudo dentro de uma sacola, iam lá pra cima, numa sala onde tudo era conferido, tin-tim por tin-tim..Quando ele fazia isso, ela tinha certeza que no final do dia seu caixa iria dar errado.Ele dizia que estava sobrando certa quantia em dinheiro,registrava esse valor, e quando ao término do expediente iam fechar novamente, a quantia que estava sobrando antes, era justamente a que faltava e claro era descontado no fundo de caixa e quando ultrapassava era feito um vale e era descontado do seu salário.Outras vezes ele mandava fechar o caixa, a levava por entre as prateleiras com a intenção de pegá-la em algum erro, tipo: não saber o nome de determinados legumes, verduras e frutas.Chegava diante de um balcão e perguntava com um brilho estranho como querendo ter o prazer de vê-la dizer que berinjela era beterraba ou coisa parecida; talvez ouvir que ¨ela não sabia o nome de tal mercadoria.Era puro preconceito e também ela pôde perceber que muitos paulistanos ainda acreditavam que no Nordeste só havia caatinga e que os pobres caboclinhos só comiam calango, lagartixa e preá( tipo de roedor). Num outro emprego, seu gerente chegou ao cúmulo de perguntar se no Nordeste havia faculdade e quando ela disse que sim, ele realmente, surpreso, disse que a imagem que tinha daquela região era: um lugar com sol causticante, árvores e rios secos, povo e animal esqueléticos, chão cheio de rachaduras e pelas estradas muito retirante a mendigar o pão.
Severina, inteligente que era, deu um sorriso maroto e perguntou para o seu chefe se ele assistia noticiário ou se aonde ele estudou os livros não estavam fora de circulação. Ainda acrescentou: Seu Wilson, o senhor precisa conhecer minha terra, nossos costumes, nossa culinária. É verdade que há lugares que realmente é castigado pela seca, mas o povo nordestino é um povo alegre, trabalhador, hospitaleiro, amigo. Como em todo lugar há pessoas boas e más. Mas na nossa terra ainda vale a palavra dada. E quando o nordestino gosta, o coração fica escancarado. Ma se você pisar na bola com ele, pronto, pode tirar o cavalinho da chuva, é caso encerrado; não haverá ninguém aqui na terra que possa fazê-lo mudar de opinião. Só mesmo Deus e mais ninguém.
Na minha terra as pessoas do campo trabalham mesmo depois de aposentadas. É comum vermos homens e mulheres com até oitenta e sete anos, tendo uma criação e capinando um roçado. Na minha terra o que falta é oportunidade para os jovens. Os municípios não investem muito na educação e tudo gira em volta da politicagem. As cidades do interior, e principalmente do sertão, se dividem em dois partidos: o que ganha e o que perde. Quando um candidato ganha, os eleitores que votaram nele passam a ter os melhores empregos e são colocados em locais mais acessíveis, por exemplo, no centro da cidade. Estes funcionários passam a lutar para provar que seu candidato realmente é bom e que agora a cidade vai pra frente. O candidato que perdeu, apesar de ter feito das tripas coração e prometer mundo e fundo, desaparece da cidade, e seu eleitores ficam trancados ou vão para rua brigar. Mas a coisa não fica por aí. Correm o risco de serem transferidos para áreas rurais, lugares de difícil acesso e dependentes de motos-taxis. Para chegarem até o novo local de trabalho penam igual a cachorro sarnento. E o grupo que perdeu trabalha para provar que o prefeito que ganhou não está qualificado para a nova gestão e o grupo vencedor batalha pra desmanchar qualquer tramóia feita pelo grupo rival. Isso dura cada dia dos quatro anos; Quando chega próximo das campanhas começa toda a farinhada e mesquinharia possível e imaginável.
O sonho tornou-se pesadelo. Severina penou. Pra sair do aluguel teve que invadir um espaço dentro da mata onde a população de baixa renda à noite, enfiava umas estacas, colocava algumas folhas de madeiras e cobria com telhas Brasilit. Ali estava o palacete para quem quisesse permanecer em São Paulo. Ainda correndo o risco de os guardas que fiscalizavam a área virem pra derrubar e apreender todo material conseguido à duras penas. O coração batia forte. Só havia descanso depois que se conseguia uma ligação de energia. Podia-se considerar proprietária do barraco. Que pesadelo! Quantas horas de insônia numa luta contra o tempo e a falta de dinheiro para conseguir o próprio espaço. Tinha que mostrar ao pessoal que ficara no nordeste que ela era mais uma que tinha vencido. Mas se isso era vitória, tinha um sabor muito amargo.
Voltou durante as férias. Fazia questão de voltar trazendo o melhor: as roupas na mala, os presentes para serem dados a parentes e aderentes, vestia-se com esmero, e tentava sem muito sucesso demonstrar um ar de quem está ascendendo como um cometa. Tentou até mudar o sotaque, pois esse tinha sido uma dos motivos de tanta chacota. Nordestino quando parte pra São Paulo ao voltar, mesmo que a viagem tenha sido de poucos dias, trás um sotaque, aquele que enrola a língua pra o erre ficar bem enroladinho. Besteira de quem não tem vergonha de suas origens e quer negá-la. Percebeu que falava cantando como um frangote que se sente galo. Desistiu. Melhor era continuar puxando seu erre. E daí não estava na sua terra?
Pessoal ao redor. Curiosidade das grandes. Não sabiam que quem estava com inveja era Severina. Eles sim, é que eram felizes e não sabiam. Todos se conheciam pelo nome, moravam no mesmo lugar há décadas, as famílias moravam praticamente na mesma rua, tudo era motivo de festa. É verdade que o dinheiro era curto, porém sempre havia uma galinha gorda, um feijãozinho colhido na roça, um queijo feito no fundo de quintal, o caju, ou a castanha tostada debaixo da velha mangueira, a pinha, o imbu, a graviola, a carambola, a romã, a goiaba, a banana-pão, a banana maçã, a banana comprida, o coco, a jaca, a macaxeira, o inhame, o cará, a laranja cravo, a laranja mimo, a laranja pêra, a acerola, a pitanga, o ingá, o araçá, a murta, o mamão. Os doces caseiros, o japonês, a rapadura_ verdadeiros manjares. A tapioca, o beiju gostoso, o cuscus feito com massa de mandioca misturado ao coco. Ai que vontade de ficar na minha terra! Pensava Severina, mas tinha que mostrar cara de quem já estava com o coração nas terras frias e generosas da grande São Paulo.
Quem compreenderia que a época da fartura já tinha passado? Que São Paulo já deu o que tinha de dar era algo que poucos queriam admitir. Agora era uma cidade inchada e por causa do êxodo rural tornou-se uma cidade que gritava por se libertar dos filhos ilegítimos.
Regressando Severina continuou na sua labuta. Ano entra, ano sai. Férias.Volta às raízes.
Um dia o caldo entornou. Uma tromba d`água, rio enchendo,gritos, represa com risco de transbordar, árvores sendo arrancadas, casas caindo, riachos virando rios, pontes sendo levadas. Pessoas, bichos, móveis, madeiras e tudo que era entulho sendo levados pelo rio que rugia como se um animal feroz estivesse nas suas entranhas. Severina sai correndo. Levando, apenas, a roupa do couro, o violão e os documentos. Vai junto com uma multidão para o lugar mais alto. Dali percebe toda catástrofe e fica muda diante de um quadro tão avassalador. Quando começa raiar o dia, ela vai até a casa de uma conhecida deixa ali seus pertences e sai para olhar mais de perto o que seu coração já tinha pressentido: morte, apenas morte. Morte de sonhos, morte de luta, morte de animais, morte de árvores, morte de barreiras, morte de estrada, morte de barracos, morte de gente.
Num momento, sem se dar conta entra numa ruela e ali pára. Um grupo ao redor de alguma coisa. Chega mais perto e ouve choro, gemido, e homens trabalhando num amontoado de terra, paus, madeira. Que cena!Vinte e cinco anos já se passaram, mas não consegue esquecer.
Uma mãe chegara à tarde da maternidade. Feliz da vida trazia seu lindo bebê. Todos estavam felizes. À noite, papai fora trabalhar, como de costume. A barreira caíra por cima da casa. Todos morreram. O papai foi avisado, e chorando ali estava. O corpo da mulher já tinha sido encontrado. Alguém com sensibilidade o cobriu com um lençol àquela que não pôde proteger a quem amara. Pouco tempo depois, os bombeiros encontraram o corpo do bebê. Severina sentiu algo se rasgando dentro do peito quando um bombeiro tentou limpar de alguma forma o corpinho daquele que jazia sem vida. Tremeu quando ele, abaixando-se junto ao corpo da mãe, levantou o lençol, colocou o bebê nos braços de quem não podia mais transmitir nenhum gesto de carinho, e, cabisbaixo saiu, enquanto o papai olhava sem mexer um músculo sequer, como se algo lhe prendesse ao solo. Era a dor da perda. Era a dor da incapacidade de mudar uma situação. Era a dor do não poder fazer nada.
Severina saiu dali se arrastando. Sentia-se esvaziada de tudo. Ainda chegava aos seus ouvidos o choro dos parentes e vizinhos, quando virando uma esquina voltou-se em direção à casa onde permaneceria até que as coisas voltassem ao ¨normal¨. Severina tinha certeza, nunca mais seria a mesma. O choque fora demais.
Ainda tentou continuar, mas não conseguiu. Quando estava perto de voltar para usufruir as benditas férias, o patrão oferecera-lhe uma promoção e todos acreditavam que ela iria aceitar. Porém, Severina apresentou sua carta pedindo despensa e não houve quem pudesse fazê-la mudar de idéia.
Despediu-se. Vendeu o barraco com tudo que tinha dentro para um baiano que estava em São Paulo com os mesmo planos que ela: juntar dinheiro, melhorar de vida e mandar buscar a família. A dele era: mulher e dez filhos. Severina não pensou duas vezes. Vendeu tudo por um preço ilusório. Só o barraco valia cinco mil reais. Vendeu por quinhentos. Deixou para o baiano tudo que tinha dentro. Fogão, cama, roupa de cama, colchão, cobertor, botijão de gás, panelas, sofá, mosqueteiro. Levar pra quê?Ele iria precisar mais do que ela.
Voltou. Fez força para vencer na sua terra. Calou sua dor e nunca disse para ninguém o que presenciou. E se alguém hoje lhe dissesse: São Paulo é o lugar para quem quer vencer. Teria uma resposta na ponta da língua:
_O lugar para quem quer vencer é estar no meio da família, aproveitando as oportunidades que a vida oferece. Valorizar as raízes, nunca se deixar vencer pelas propostas injustas deverão ser guias para quem não tem medo de lutar. A colheita acontecerá como conseqüência. O resto é resto.
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