Quatro notas musicais

Quatro notas musicais

Alguém bateu o portão. O que significa que alguém chegou, ou saiu, deduzo eu, do meu poleiro. Quando é a Celeste, logo se fica sabendo, pois ela anuncia: gente, cheguei! Artur late. Tadeu deixa a mochila na porta, pois Tadeu é místico, e com seus poderes extra sensoriais faz com que a mochila chegue no seu quarto sozinha. Bom garoto. Carol diz que quer comer uma coisinha. Acabou de comer dois pratos de arroz, feijão, bife e ovo, uma lata de leite condensado e 5 gelatinas. Celeste suspira, desanimada, pois achou que as duas travessas inteiras de potes de gelatina durariam até domingo. Pessoas são otimistas. Aldeíde tem festa. Óbvio. Do meu poleiro, começo a rezar o terço no intento de que ela arranje carona. Fê quer assistir filme, óbvio, e quer saber que horas vamos na locadora. Tadeu, de toalha, pergunta se posso levá-lo para a casa do Benê. No problem. Esse programa eu gosto. Redondezas, ruas bucólicas, festival de abobrinhas místicas até a casa do Benê. Tadeu acabou de inventar um anel de papel que serve para limpar a orelha, tanto faz se esquerda ou direita, basta trocar o anel de mão para facilitar a limpeza da orelha desejada. Fê realiza testes com o anel. Aldeíde ficou em casa se arrumando. Numa sexta feira como essa, ela começa a se arrumar às 6 e fica quase pronta às10. Celeste e Carol estão assistindo novela e arrumando umas caixas, que só o Espírito Santo sabe o que contém as caixas e porque tanto Celeste quer arrumá-las. Saímos da casa do Benê rumo à locadora e ruminando sobre as possibilidades práticas da invenção de Tadeu.

Perambular pela locadora equivale a um passeio no Louvre. Diante de cada filme, argüições, contemplações, comparações, hesitações.

Depois de uma eternidade na locadora, e sem saber que o coração da gente quase explode de tanta saudade de momentos como esse, voltamos pra casa. Aldeíde é uma figura e tanto – depois que ela finalmente se arrumou, deixando um rastro de roupas e sapatos espalhados, que dão a impressão de que uma caravana de refugiados por ali passou às pressas, anuncia que está quase pronta e que, desta vez, arranjou carona. Mas antes faz um desfile. Fê boceja. Quer assistir o quanto antes os quatro filmes que pegamos para essa por vir madrugada. Celeste quer pipoca, e questiona em qual quarto Carol dormirá. Toca a pegar o colchão, roupa de cama, e os bichos. Carol pede a girafa amarela. Mas antes vai dormir na cama com a Celeste. Depois eu a carrego para o quarto. Aldeíde já desfilou de hippie, de patricinha e de intelectual. “Que roupa vocês acham que eu uso?” Cada um dá um palpite. Pipoca pra Celeste, e toca a fazer arrumação da sala para a sessão de cinema. Junta-se sofás, arrasta-se mesas, mata-se pernilongos. Buzinas. Portão batendo. Artur late. Aldeíde foi. Celeste quer água, quer beijo, e quer que eu coloque as caixas onde estavam. Faz frio. Carol ronca abraçada com a girafa. Dou um beijo na sua bochecha e puxo o cobertor para perto da sua nuca. Lá embaixo, Fê já me chamou umas 30 vezes: pai, vamos ou não vamos assistir filme? Artur late. Desço a escada inconsciente de que tudo isso é só um instante. No final do filme 2, madrugada silenciosa, Celeste, sonâmbula, indaga que filme estamos assistindo e sobe para o quarto, com uma bandeja de salgadinhos, gelatina e guaraná. No dia seguinte ela diz que não lembra. Fê quer fazer uma boquinha. Vou para o meu poleiro fumar um cigarro. Duas da manhã é um bom horário para passear com o Artur sem coleira, pelas cercanias, e comentar sobre os filmes que notamos e, por que não, sobre a vida que notamos. De volta aos sofás, no início do terceiro filme, Tadeu chega. Bate o portão. Artur late. Quem foi que te trouxe pra casa? Ele me responde: a mãe do ãaamm xis, esqueci, o que vocês estão vendo? Mais um para o turno da madrugada, repleta de quimeras sobre mil coisas sem fim. E sem começo. Manhã de sábado. Carol já andou de patinete e tomou banho. Quando Carol toma banho, ela simplesmente acaba com todos os xampus da casa. Numa casa onde tem mulheres tem xampus, a menos que elas sejam carecas, o que não é o caso. Celeste diz: quando a menina fica muito quieta no banheiro, é porque está aprontando... Você viu que horas a Adeíde voltou? Vi, respondo mentindo, porque desmaiei no sofá, mas a cozinha, de manhãzinha, dava indícios de que a praga dos gafanhotos adolescentes ali fez repastos. Pela proporção dos indícios, percebe-se que não foram dois, e sim três. Manhã ensolarada. Lista de compras para o almoço.

Carol quer ir na praça de bicicleta. Será a continuação do treinamento de andar de bicicleta sem as rodinhas de apoio. Fomos e voltamos muito bem. Os adolescentes dormem. Celeste me pede para provar o molho do macarrão. Toda vez eu dou a mesma desculpa. Digo que preciso provar de novo, de novo, e de novo, pois não sinto gosto de nada, acho que é a idade, quem sabe se com pão melhora, e fico uma hora provando. Carol trouxe uns DVDs para surdos, dado o volume que ela assiste. Almoço às duas. Falta suco. Por que não bebem água? indago, do meu poleiro. Querem suco e pronto. E pronto me bandeio contrafeito ao local mais próximo para comprar suco em pó. Que depois é misturado com água. Dava no mesmo. Ninguém entende. Só eu, no meu poleiro. Mesa posta, seis bocas, muita conversa. Aldeíde tem festa. Óbvio. Fê quer assistir mais filmes. Óbvio. Carol também quer filmes, que vamos assistir de tarde, enquanto Celeste e Aldeíde vão no cabeleireiro. Celeste diz que podemos ficar com o carro, pois vão no salão da esquina. A festa da Aldeíde é onde Judas teve um mal estar, porque ninguém perde as botas sem antes ter sofrido um mal estar. Dezesseis quilos de louça para lavar, se assim pode-se expressar. Fê e Tadeu estão no quarto, com TV e vídeo game no máximo suportável, por mais que eu peça para baixarem o volume, e tem de ser um pedido pessoal, já que não se consegue ouvir nada em lugar nenhum, então subo a escada, peço, eles acatam, depois desço, eles recomeçam. Carol e eu assistimos não sei o que, e é o momento de arrastar a menina para a fonte. O bom de ter uma filha dessa idade é que ainda se pode arrastá-la. Ela protesta, mas depois a gente dá muita risada, enchendo os garrafões de água. Jantar de sábado, em épocas de vacas nem gordas nem magras, o cardápio é à la carte-self-service-delivery. Celeste anota os pedidos. Esfihas e pizzas, tudo da mesma pizzaria, que só o Espírito Santo sabe como eles não faliram, com aqueles preços acessíveis. Estou no meu poleiro, orando pela carona da Aldeíde. Depois do jantar, Carol diz que quer comer uma coisinha. Benê e não sei quem chegam, pois vão ficar trancados no quarto do Tadeu jogando um jogo misterioso chamado RPG, até o fim dos tempos. Fê quer ir na locadora. Me pergunto que horas vou lavar a louça. Na ida, ele me adverte: amanhã, me deixa ver o jogo sozinho, porque quando você está perto, o Corintians perde. Tento explicar pra ele que sei a escalação do São Paulo de 1971. Que hoje para mim tanto faz. Que não torço. Que...ele não acredita, e me faz jurar. Juro. Carol e Celeste estão vendo novela. Ficamos os 3 juntos até o Fê gritar pela trigésima vez: vamos assistir filme ou não? Tadeu, Benê e não sei quem jogam o maravilhoso jogo misterioso e silencioso chamado RPG. Se o tempo ajudar, amanhã vamos na praça. Desço a escada inconsciente de que tudo isso irá desaparecer. E que vai deixar uma ausência tão profunda, que nem mesmo uma existência inteira será capaz de preencher. Por um breve instante a vida foi perfeita. Bom, suspiro, ninguém vive do passado. Mas pode-se passear por ali de vez em quando, e agradecer por cada minuto vivido. Ainda dá pra ouvir as quatro notas musicais – Fê, Dé, Ma e Cá, soando em uníssono, e dando sentindo numa vida que, sem isso, se viu de volta ao deserto onde se busca algum sentido.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/02/2009
Reeditado em 21/06/2013
Código do texto: T1440853
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