Mananciais de Lirismo

Penso no manancial de lirismo popular e no encantamento dos mitos que vão, aos poucos, sendo extintos pela aridez social em que convivemos.

Penso nos homens e nas mulheres que escrevem seus poemas até altas horas da madrugada, com uma xícara de café ao lado do computador.

Penso nos poetas malditos constituídos em hordas pelos bares, afogando em ácool uma uma vocação inútil, frustrada por mil e uma contingências de ordem financeira.

Penso em Ferreira Gullar que vale trinta James Merrilem em embalagem de luxo.

Penso no que se conta de Raimundo Correia que, indo residir numa cidade de interior, mandou cartão para o vendeiro da esquina, pedindo caderneta de fiados. O comerciante respondeu que se fosse Raimundo Correia - o poeta - desistisse do crédito. E, forçado pelas circunstâncias, o grande artista negou-se: que não! Que se tratava de uma lamentável coincidência de nomes.

Penso em Drummond e em seu companheiro Emílio Moura, que nunca saiu de Minas Gerais.

Penso em Afonso Romano de Sant'Anna e lembro-me de sua explicação da gênesis do poema " A Catedral de Colônia".

Penso em Ítalo Moricone, em Armindo Trevisan, para constatar que, via de regra, os poetas brasileiros são diletantes, isto é, compõem seus poemas em horas rubadas ao repouso normal. Sendo um intérprete do povo e sua fome, torna-se o literato um ser mais ou menos marginal, sem chão social e vivendo num clima de suspeição.

Quero estabelecer comparações entre a palavra poética - alimento da alma - e a comida - alimento do corpo. Às vezes, através de comparações, chega-se à síntese. Lembro-me, então, de que há sempre os sonhos que nos traem. Há-os bons e melhores. Sublimes, até. E eis a poesia colada no peito, calada, embora, na garganta. Há, em contrapartida, a penúria, abismo onde se cai caminho onde se pisa infeliz, vereda que nega a vocação natural do homem.

Não aceitar o perdão da poesia é render-se a uma vida imcompleta, à mesquinhês. Daí o canto, a litania, o olhar perscrutrador, e a ressonância da rima a ruflar no âmago amargo, a língua livre e sumarenta. A arte é o homem nu, eremita e équite do signo, se poeta.

Há o sabor do eterno a seduzir, a felicidade que virá, virá, virá se não por razão de construção, por esperança ou espólio. Mas virá.

Nos sentimentos mais recônditos, reorganisa-se a ciência das emoções, do etos, o motivo prodigioso capaz de verter lágrimas amargas de amor negado ou de esboçar sorriso doce, de amor contaminado. Então, apenas pelo afã - não pelo exato êxtase - dos afagos, contrai-se a ternura no peito, umedecem-se de lhanesa outros olhares seguros, certeiros, meigos também.

Porque o homem origina-se da água e surge do mistério do ventre feminino cheio de estrelas no olhar, reinventa a vida todas as manhãs, plena de diferentes tons e polissêmica.

As mensagens não são apenas úteis para comunicar que os leitos dos filhos já estão arrumados, que ainda não conseguimos pagar as prestações do mês que já findou,que estamos com fome e que caminhamos pela estrada onde vimos um pé de flor-de-lis e um ninho de sabiá. As mensagens também são úteis para se perguntar que versos dedicarão a nós nossos amores. Estas, sim, mensagens para a vida inteira.

As metáforas da vida humana não são de segunda a sexta-feira, mas estabelecem a conotação da eternidade e mais um dia. Assim é a poesia.

Penso em como seria a visão de todos estes séculos de fome sem o jato lírico.

Penso... Não, é melhor não pensar!

Em todo caso, tenho fé e escolho o destino do bardo.

Flávia Melo
Enviado por Flávia Melo em 15/02/2009
Reeditado em 15/02/2009
Código do texto: T1440110