Se a gente fosse vizinho
Se a gente fosse vizinho
Cê tava lascada. Ah, tava. Dia sim, dia não, de tardezinha, irias me agüentar. Ah, irias. Presta bem atenção, pois vou te mostrar o cenário. Batendo palmas lá fora. Tentando assoviar. Campainha pra que? Detesto campainha. Dependendo do período, suponhamos, o período de adaptação, que você ainda chora de ódio, baixinho, pensando, “putz, aquele cara de novo”, mas abre a porta, e depois de um sorriso amarelo, dizes “oi, que surpresa, estava de saída, sabe aquela minha tia de Macapá, pois é, coitada...” Eu não daria ouvidos e iria reclamar pela falta de café. Chegando perto da pia da cozinha, eu pegaria uma das esponjas de lavar louça e diria: “puxa você tem duas, me dá uma?” Você, muito educada, acena com a cabeça e vai pro lavabo, se tranca e literalmente chora de ódio, enquanto eu vou jogando fora a conversa: “Como pra que esponja? Não te contei sobre o meu aquário? Já tenho dois peixinhos, quero colocar mais frutos do mar lá dentro. Escuta, cê tem uma lâmpada sobrando? A minha queimou. Uau, bolachas!” Nessa altura eu estaria abrindo os armários da cozinha, enquanto você chora no banheiro, tentando se refazer, ruminando “não é possível, esse cara aqui de novo!?”. No quinto armário eu exclamaria, “Fósforos!! Você tem um maço inteiro, me dá uma caixinha?” É o momento que você sai do banheiro, e ao notar-lhe com os olhos vermelhos, eu perguntaria: “gripe?” Você responde: não, um cisco nos dois olhos. “Você tem colírio?” indagaria eu, “posso pegar emprestado? As vezes acontece isso comigo, lá em casa...” Se eu fosse teu vizinho, nesse ponto uniríamos os tempos dos verbos, que estavam em desacordo até agora, e você, mentalmente orando, oralmente me convida pra tomar um café lá na esquina, pois a sua tia de Macapá telegrafou, exigindo a sua presença. Talvez fiques até o natal. Antes de sairmos, você, sempre educada, e precavida, executa o ritual do dia sim, dia não: pega um saquinho plástico e nele insere as coisas sugeridas neste dia: a esponja, a caixa de fósforo, etc. Então vamos para a praça. Ao lado da praça há uma cafeteria. Enquanto nos dirigimos para lá, do mesmo modo como temos feito ultimamente, entre um dia e outro, conversamos. Você tentando me explicar que essa esponja não é a que melhor se adequaria no meu aquário, etc. Nem travessos, nem avessos. Com passo firme até o destino, hoje não falaremos muito no percurso. Estamos zangados. Fingimos que não. Através dos relativos elementos de humor, conseguimos nos manter fora do alvo, desde que eu bati palmas na porta da sua casa. Agora, já acomodados e sorvendo café, nada foi e nem será dito. Pelo menos não da nossa parte. Se a gente fosse vizinho, não iria procurá-la para desabafar a ira, e o desejo de ver enjaulados esses 3 filhos da puta, que fizeram mal à Paula, no metrô de Zurique. Tampouco falaria palavrão. Muito menos na sua frente.
- Mas... você acabou de falar! Oh...estou horrorizada.
- Me desculpe, vou te compensar. Garçom, por favor, traga a encomenda. Veja preparei uma surpresa pra você.
O garçom traz um embrulho embrulhado com fita colorida.
Você abre.
- Oh.....- você exclama.
Eu digo:
- Trata-se da primeira edição da “Vida Sobrenatural das Focas”.
- Oh...- você exclama de novo.
É quando eu digo:
- E foi psicografado por uma foca. Gostou?
- Muito. Mas não podes falar palavrão na minha frente.
- Concordo. Desculpe. Porque, afinal, se eu vim ao mundo, e tenho o que se pode chamar de cérebro, além de um mínimo de sangue nas minhas veias, (8 litros?), e fico sabendo que uma bra-si-lei-ra é barbaramente vilipendiada por 3 ovelhas, e se, enquanto ser humano, e bra-si-lei-ro, eu não puder, ao menos, chamá-los de filhos da puta, então sinceramente, eu pergunto: o que estou fazendo aqui? Se nenhuma voz se levanta contra esse gênero de argh..... ser humano, contra essa argh... treva filosófica, eles vão fazer o que quiserem...
- Você falou de novo!! Estou chocada! Pela madrugada! Isso é um descalabro! Não será com esse tipo de palavreado que vais conseguir alguma coisa.
- Não quero conseguir nada. Só desabafar. Ah, se a gente fosse vizinho...
- Então desabafe sem palavrão. Muito livro esse lindo que você me deu, quer dizer, tá vendo, conseguiu me deixar atordoada. Muito lindo esse livro. Tem certeza que foi psicografado por uma foca?
- Absoluta. Está escrito na orelha. Psicografado por Foca Foca, filha da...
- De novo não!!
- De novo o que? O nome dela é Foca Foca Filha, pois a mãe também escreve, tem o mesmo nome, então, para diferenciar, ela assina assim. Até porque é filha de uma Foca. Você queria que fosse filha de que?
- Ah...chega, tá bom, adorei o presente. Vamos falar de coisas mais amenas. Mas saiba, palavrão não leva a nada. Não violência gera não violência. Isso é o que o mundo precisa. Depois, você fica falando desse jeito, parece uma pedra.
- Pedra? Ei, acabo de lembrar, existe um ditado antiqüíssimo, que vem a calhar.
- Tem palavrão? Não? Então pode dizer, adoro ditados.
- “A pedra fala e a parede grita”.