Primeiros socorros
Um amigo com quem não falava há mais de quinze anos telefonou-me uma semana antes do feriado prolongado, convidando-me para passá-lo em sua casa de praia. Lucena, a praia da casa de meu amigo, ainda era desconhecida e seu acesso se dava por uma estrada de terra pela qual transitávamos ameaçadoramente. Para se ter uma idéia, precisei pedir para meus filhos, minha esposa e o cachorro caminharem cerca de três quilômetros até um ponto onde os esperava no carro.
A casa espaçosa e a trezentos metros do mar, rodeada de árvores nativas e de algumas jaulas onde meu amigo cuidava de animais que apareciam, expulsos de seus habitats por situações diversas, trazia uma grande sensação de sossego. O único desassossego na verdade provinha da bebida.
Começamos a nos distanciar depois que ele descobriu o álcool. Dia e noite, noite e dia, ele estava bebendo. Começou com a cerveja, depois partiu para o uísque, vinho, licor. Presenciei o café da manhã com pinga trazida do interior do Espírito Santo.
Ele parecia mudado. O feriado prolongado prometia.
Chegamos a sua casa na manhã de quinta-feira. Almoçamos, passeamos na praia, entramos no mar, jantamos e acendemos uma fogueira em volta da qual cantávamos músicas de serenata, acompanhados de um violão.
A sexta-feira transcorreu tranquilamente, porém o fato marcante sucedeu na tarde de sábado. Durante uma manobra irregular, meu filho deixou a prancha escapar. Ela deslizou direto para a cabeça do filho de outro convidado. Desesperados, entramos em casa correndo, querendo chamar o socorro, os bombeiros, a polícia, o exército, quem sabe a marinha?
Daí a avó do menino atingido, cuja cabeça regurgitava sangue de tonalidades diferentes para minhas vistas, disse que ninguém conseguiria descobrir aquele lugar isolado. Além do mais, naquele tempo ainda não existia telefone móvel e não havia um telefone fixo nas proximidades.
Diante do desespero geral, uma voz proclamou:
- Vamos prestar os primeiros socorros!
O pai do menino e eu nos levantamos, entramos na casa, vasculhamos a sala, a cozinha, os quartos, a lavanderia, o terraço e apenas na garagem, empilhadas, encontramos três grandes caixas de primeiro socorros.
Pegamos a primeira. Tivemos uma surpresa quando a abrimos. Diferentemente de outras caixas de primeiros socorros – aquela caixa media um metro de largura por sessenta centímetros de comprimento – não encontramos faixas, esparadrapos, tesouras, gaze, mercúrio, esterilizantes, pomadas ou comprimidos. Uma ao lado da outra, mais de vinte pequenas garrafas de cachaça.
O pai do menino e eu nos olhamos boquiabertos e voltamos à garagem em busca das caixas remanescentes. Nossa surpresa cresceu na medida em que as abríamos e constatávamos pequenas garrafas de vinho e de uísque.
Quando retornamos, meu amigo estancara o sangue com uma toalha azul. O menino voltara ao mar.
Questionado sobre o conteúdo das caixas de primeiros socorros, limitou-se a nos perguntar, sorrindo:
- Existem primeiros socorros mais importantes do que esses?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de fevereiro de 2009.