A noite que um vampiro sorriu para mim
Fazia um calor danado. A banda tocava em ritmo alucinante anestesiando os corpos suados. Pessoas - muitas das quais eu nunca havia visto na vida - supriam a vazão de líquido ingerindo cerveja morna, devido ao adiantado da hora.
Resolvi me afastar por alguns momentos da massa quente e dançante. O clube que acolhia a eletrizante noite fora construído às margens do rio que corta a minha cidade. (Preciso abrir este parêntese para me exibir dizendo que, é um dos únicos rios do Brasil a mudar sua coloração do azul para o verde!). Como dizia, resolvi me afastar do clima escaldante que invadia o salão, para tomar o ar fresco vindo do rio, na varanda que circunda o tradicional clube.
Apoiei-me no parapeito de madeira e respirei fundo, tentando desvendar o leito de água corrente que fora encoberto pelas árvores que repousam em suas margens. Avistei alguns corpos perdidos na escurdão coreografando o movimento letárgico dos amantes. E resolvi me virar para não invadir a privacidade que alí se escancarava. Voltei-me para o espaço interno da ampla sacada e foi então que o avistei.
Sentado junto à parede de tijolos aparentes, atrás da pequena mesa. Chamou-me imediatamente a atenção devido ao porte atlético. De onde estava,eu só conseguia ver o tórax ( envolto numa baby look preta) e os braços , mas a amostra já sugeria o conteúdo. Tinha os cabelos escuros esculpidos em um corte bem aparado, ao estilo masculino, arrematado por costeletas grossas que desciam paralelas às orelhas. E até então não tinha olhado para mim.
Devo ter permanecido assim por alguns minutos, apreciando o “panorama” sentindo-me disfarçada pela meia luz que alí havia. Seu olhar singrava muito além daquela sacada e me peguei tentando adivinhar por onde aquela mente viajava , o que aquele coração ansiava, e por que estava alí sozinho, longe das almas embriagadas que se esvaiam no salão... Então ele se mexeu.
Baixei os olhos tentando me esconder, como um gatuno flagrado na hora do furto. E mirei disfarçadamente as suas mãos. Os dedos moviam-se sobre a mesa acompanhando o rítimo abafado que fugia pelas janelas. Executava um piano invisível com unhas estranhamente compridas. Afastei o olhar por impulso,porém, a curiosidade que me acompanha desde o dia em que nasci, me forçou a encará-lo. E, como constatei, ele encarava a mim.
Custei a definir a cor daquele olhar. Era diferente de tudo que já havia me mirado. Longe de ser um olhar frio, era um olhar penetrante que ele me lançava...E quente,tão quente que me dei conta que seus olhos eram vermelhos. Exatamente como o efeito causado pelo flash em algumas fotografias. Não sei definir a sensação que me possuiu, mas tive a certeza de que a minha imagem o divertiu , pois ele sorriu para mim.
Achava que todos os sobressaltos já haviam me acometido naquela busca de ar fresco ,quando, aquilo que deveria ser um sorriso, descortinou-se para mim num close do Conde Drácula; o personagem, quase íntimo, dos apreciadores de películas de terror. A alvura do branco não amenizava a desproporção dos dentes pequenos sustentados por dois enormes e assombrosos caninos que, ameaçavam saborear o meu pescoço a qualquer momento. Sem tempo para um autógrafo,fugi descabeladamente para dentro do caldeirão que fervilhava cantando: “Vou beijar-te agora não me leve a mal, hoje é carnaval...”
Por muito tempo mantive em silêncio aquela noite.Por inconsistência de fatos não poderia afirmar se tinha testemunhado a fantasia mais original de todos os carnavais que brinquei na minha vida. Ou ,se realmente havia paquerado pecaminosamente (era casada na época) um conde das trevas.
Dou aos leitores a liberdade de assinarem a dedução que lhes for mais cabível para esta história. Mas afirmo que ela é tão verdadeira quanto o meu rio que troca de cores e que serviu de cenário, na noite em que um vampiro sorriu para mim.