Substituta
Atravessando o vento e lembrando do que ainda não aconteceu. Lembrando sonhos vividos nos muxoxos do tempo. Sonhos esquecidos no movimento do dia. Sonhos perdidos no escuro da noite. Ela tinha mais vida que aquela pedra. A pedra tinha mais calma que ela. E nenhuma das duas tinha porque sair dali. O vento parou de soprar. Ela parou de lembrar e partiu. Sorte da pedra que tinha porque ficar.
Andou e tropeçou. Olhou e assustou. Quem tinha esquecido aquela vida ali?! Uma vida atraente, de olhos verdes e sonhos castanhos. As realizações eram heróicas e os fatos distorcidos. Não se produz heróis com o pequeno da vida. A vida abandonada era linda. Cheia de atos, rompimentos, acertos, facilidades e superações sem dor. Deve ser por isso que foi abandonada, não se monta uma vida de herói sem os bastidores da vida de qualquer um. Lembrou da pedra, ela tem porque ficar. Essa vida que se vá.
Caminhou sem pena de deixar aquela vida perdida. Vidas que se percam, pedras que se enterrem, ela vai seguir. Segue e tropeça de novo. Maldito sapato, vai ter que usar salto como suas vizinhas. Mas não é o sapato nem a falta de salto. É um corpo mesmo. Sorte que é um corpo franzino. Sorte que os olhos são pretos e os cabelos pixains. Sorte que as roupas são rasgadas. Que os sapatos são trocados. Sorte que tem o amarelo que a morte traz para os que padeceram em vida. Se fosse diferente podia até virar suspeita. Se fosse diferente tinha apenas a pedra com álibi. E sabia que a pedra iria olhar altiva e continuar na pose de quem sabe o que faz. Maldita calma daquela pedra.
Fez sua obrigação de cidadã. Ignorou aquele corpo. Não criou alarde. Não colocou em risco a ordem estabelecida e seguiu. Andou e parou. Olhava agora para o chão. Não queria tropeçar novamente. Cuidava do chão agora. Parou na frente do vídeo jogado. Olhou aqueles ricos altaneiros que trocam de mulheres e homens como ela troca de sapato sem salto para chinelo de dedo. Suspirou com as gracinhas dos confinados. Sofreu com o drama da violentada. Revoltou-se com o presidente daquela nação do outro lado do mundo e com nome estranho. Tremeu com falsidades. Assustou-se com o tempo. Doou para os irmãos de outra raça. E dormiu.
Depois do vídeo não caminhou mais. Lembrou da pedra só quando descobriu que também tinha um porque pra ficar. Perdeu aquela calma quando lembrou que a pedra esta enterrada. Também quando pensou na vida abandonada. Será que pertencia a alguém como ela? Mas a musiqueta tocou, se concentrou novamente no vídeo e voltou pra calma dos bastidores da vida de qualquer um.