In Vino Veritas
Era época de exames. Estava saturada da matéria e farta de estar fechada há horas dentro de quatro paredes de uma construção rasca que permitia sentir na pele os caprichos meteorológicos da natureza.
Fui até à faculdade. Dirigi-me ao serviço de consultas de espécies pecuárias. Estava certa que não seria a minha área de trabalho futuro. Mas encantava-me passear pelas aldeias de Trás-os-Montes, acompanhando os veterinários de campo.
Era só eu a acompanhar o Dr. Carlos Pinto, o melhor clínico das referidas espécies, naquele tempo. Acompanhou-nos um amigo dele, docente de uma cadeira teórica pois nestes casos, por vezes é preciso mais que um par de mãos de ajuda.
E lá fomos numa viatura que se parecia remotamente com um automóvel. Um monte de chapa azul escura toda amolgado que não permitia abrir as portas traseiras. Entrei pela frente e lá me estatelei na retaguarda. O mais singular era um buraco no chão de forma rectangular por onde entrava um ventinho desagradável que me enregelava os pés. Ia empolgada e isso era muito mais importante. Era longe, no meio da serra do Marão. Perto de Mesão Frio. Foi uma viagem de mais de uma hora e começava a escurecer.
Chegamos a uma pequena aldeia de casas de granito. Aquela era particularmente grande e bonita. Tinha uma grande pátio e em anexo dois edifícios mais pequenos em pedra servindo para alojar os bovinos. Um era só para os vitelos que eram os que estavam doentes. Entramos no estábulo e um forte cheiro a silagem evolveu-nos, trazendo-nos ao corpo o reconforto perdido durante as agruras da viagem.
Era um problema do trato respiratório. Os quatro vitelos maroneses estavam com pneumonia. O Médico deixou-me auscultar o que acabara de ouvir e eu pela primeira vez podia confirmar ao vivo, os sons que apenas conhecera em gravações nas aulas teóricas: os estertores, os sibilos, a respiração forçada. Fabuloso!
O tratamento foi demorado e árduo. Instituir fluidoterapia a quatro vitelos, administrar antibióticos e broncodilatadores demorou cerca de duas horas. Desfrutei de cada minuto dos procedimentos. Ajudar a tratar aqueles animais foi uma tarefa deveras gratificante.
Estávamos confiantes na recuperação mas o prognóstico ficou-se por reservado, não fosse o Diabo tecê-las.
Finalmente chegou a melhor parte da jornada: o lanche! Estava habituada à generosa hospitalidade das gentes transmontanas mas nunca tinha visto tamanho festim. Era uma mesa cheia de pratinhos de petiscos de todos os tipos: chouriços, salpicões, queijo, morcelas, alheiras, bolinhos, pão e o melhor da festa: vinho verde!
O dono da casa passou-me um copo para a mão e serviu-me visto eu ser a única senhora presente. Quando tentou servir o meu professor este recusou delicadamente com o pretexto de ter de conduzir. O amigo para cumulo era abstémico. E disse o senhor: “ ora ainda bem que aqui a menina me vai fazer companhia pois beber sozinho não tem graça.” E lá me foi enchendo o copo. Sempre que eu bebia ele tornava a encher. O vinho era de um qualidade superior. Sim, porque beber vinho é um acto de cultura. E eu tive bons mestres. De modo que quando saímos para a rua a minha vontade era de lá ter pernoitado. Num sofá que fosse, a um canto, para digerir o repasto. Mas parecia mal e eu queria passar a Patologia Médica e a Farmacologia.
Fizemo-nos à estrada na pandeireta velha. Monte acima. Passada meia hora de caminho, sem aviso o carro tossiu três vezes e parou. No meio do nada. Rodeados de escuridão absoluta. Piloto e co-piloto no mais profundo silêncio. Eu, no banco de trás, consciente do absurdo da situação mas inspirada pelo néctar dos deuses desato a rir às gargalhadas.
Não havia nada a fazer. Os telemóveis ainda não haviam sido inventados. O bip do clínico só recebia mensagens. Não sabíamos a quantos quilómetros encontraríamos a população mais próxima e meia hora de carro de caminho significava várias a pé para voltar para trás. Por tudo isso ria. Continuava a rir. Eles muito aflitos. Sem encontrar solução trocavam monossílabos entre si. Passado um quarto de hora imóveis e o Dr. Carlos Pinto resolveu dar de novo à ignição. O destroço de automóvel funcionou! E lá arrancámos em direcção à cidade. Todos contentes, mas eu muito mais alegre que os meus companheiros de viajem e aventura.
Era época de exames. Estava saturada da matéria e farta de estar fechada há horas dentro de quatro paredes de uma construção rasca que permitia sentir na pele os caprichos meteorológicos da natureza.
Fui até à faculdade. Dirigi-me ao serviço de consultas de espécies pecuárias. Estava certa que não seria a minha área de trabalho futuro. Mas encantava-me passear pelas aldeias de Trás-os-Montes, acompanhando os veterinários de campo.
Era só eu a acompanhar o Dr. Carlos Pinto, o melhor clínico das referidas espécies, naquele tempo. Acompanhou-nos um amigo dele, docente de uma cadeira teórica pois nestes casos, por vezes é preciso mais que um par de mãos de ajuda.
E lá fomos numa viatura que se parecia remotamente com um automóvel. Um monte de chapa azul escura toda amolgado que não permitia abrir as portas traseiras. Entrei pela frente e lá me estatelei na retaguarda. O mais singular era um buraco no chão de forma rectangular por onde entrava um ventinho desagradável que me enregelava os pés. Ia empolgada e isso era muito mais importante. Era longe, no meio da serra do Marão. Perto de Mesão Frio. Foi uma viagem de mais de uma hora e começava a escurecer.
Chegamos a uma pequena aldeia de casas de granito. Aquela era particularmente grande e bonita. Tinha uma grande pátio e em anexo dois edifícios mais pequenos em pedra servindo para alojar os bovinos. Um era só para os vitelos que eram os que estavam doentes. Entramos no estábulo e um forte cheiro a silagem evolveu-nos, trazendo-nos ao corpo o reconforto perdido durante as agruras da viagem.
Era um problema do trato respiratório. Os quatro vitelos maroneses estavam com pneumonia. O Médico deixou-me auscultar o que acabara de ouvir e eu pela primeira vez podia confirmar ao vivo, os sons que apenas conhecera em gravações nas aulas teóricas: os estertores, os sibilos, a respiração forçada. Fabuloso!
O tratamento foi demorado e árduo. Instituir fluidoterapia a quatro vitelos, administrar antibióticos e broncodilatadores demorou cerca de duas horas. Desfrutei de cada minuto dos procedimentos. Ajudar a tratar aqueles animais foi uma tarefa deveras gratificante.
Estávamos confiantes na recuperação mas o prognóstico ficou-se por reservado, não fosse o Diabo tecê-las.
Finalmente chegou a melhor parte da jornada: o lanche! Estava habituada à generosa hospitalidade das gentes transmontanas mas nunca tinha visto tamanho festim. Era uma mesa cheia de pratinhos de petiscos de todos os tipos: chouriços, salpicões, queijo, morcelas, alheiras, bolinhos, pão e o melhor da festa: vinho verde!
O dono da casa passou-me um copo para a mão e serviu-me visto eu ser a única senhora presente. Quando tentou servir o meu professor este recusou delicadamente com o pretexto de ter de conduzir. O amigo para cumulo era abstémico. E disse o senhor: “ ora ainda bem que aqui a menina me vai fazer companhia pois beber sozinho não tem graça.” E lá me foi enchendo o copo. Sempre que eu bebia ele tornava a encher. O vinho era de um qualidade superior. Sim, porque beber vinho é um acto de cultura. E eu tive bons mestres. De modo que quando saímos para a rua a minha vontade era de lá ter pernoitado. Num sofá que fosse, a um canto, para digerir o repasto. Mas parecia mal e eu queria passar a Patologia Médica e a Farmacologia.
Fizemo-nos à estrada na pandeireta velha. Monte acima. Passada meia hora de caminho, sem aviso o carro tossiu três vezes e parou. No meio do nada. Rodeados de escuridão absoluta. Piloto e co-piloto no mais profundo silêncio. Eu, no banco de trás, consciente do absurdo da situação mas inspirada pelo néctar dos deuses desato a rir às gargalhadas.
Não havia nada a fazer. Os telemóveis ainda não haviam sido inventados. O bip do clínico só recebia mensagens. Não sabíamos a quantos quilómetros encontraríamos a população mais próxima e meia hora de carro de caminho significava várias a pé para voltar para trás. Por tudo isso ria. Continuava a rir. Eles muito aflitos. Sem encontrar solução trocavam monossílabos entre si. Passado um quarto de hora imóveis e o Dr. Carlos Pinto resolveu dar de novo à ignição. O destroço de automóvel funcionou! E lá arrancámos em direcção à cidade. Todos contentes, mas eu muito mais alegre que os meus companheiros de viajem e aventura.