A Fuga
A jornada de trabalho aproximava-se do fim. Já antecipava o banho de imersão relaxante antes do jantar.•Respondi aos alunos as dúvidas do costume, antes de terminar a aula prática de cirurgia.
O animal já repousava no internamento geral. Tudo parecia calmo. Até que um truz-truz na porta originou uma reviravolta nos acontecimentos do dia. A minha colega de serviço ao banco do hospital de animais de companhia da faculdade vinha procurar a minha ajuda. Que nunca tinha visto semelhante coisa: um cão apresentava na zona dos gânglios inguinais, isto é, nas virilhas, umas massas do tamanho de bolas de ténis. O caso parecia grave. Aguçou-me a curiosidade.” Traz lá o bicho para dar uma olhadela.” Os alunos ficaram empolgados. Parecia um vulgar e pacífico rafeiro de pequeno porte. Coloquei-o em cima de uma das mesas da sala de tratamentos. Palpei-lhe as massas que: eram de um tamanho impressionante: no mínimo como duas laranjas.
“Meninos, venham cá sentir isto!”
E logo um rancho de vinte jovens excitadíssimos se acotovelava em redor da mesa. Mal o primeiro estudante lhe tentou tocar a fera virou-se e num instinto de sobrevivência radical mordeu-lhe furiosamente a mão, saltando e refugiando-se debaixo de um armário. O aluno pingava sangue. A estupefacção era geral. “Uma coisa de cada vez. Ninguém toque no cão!” E fazendo os curativos na mão do rapaz fui questionando os restantes sobre a matéria dada nas teóricas: tratamento de feridas frescas.
Tudo parecia ter acalmado, incluindo o canídeo. Mas medidas drásticas de segurança se impunham. Neste ponto entrou em acção um instrumento de contenção denominado “ O laço”. Trata-se de uma vara de metal oca por onde passa uma corda de um extremo ao outro e volta a entrar saindo no ponto inicial. De modo que num extremo temos um laço de corda e noutro duas pontas A intenção é lançar o laço à volta do pescoço do cão e ao puxar as pontas este aperta e imobiliza o animal que por isso fica impedido de se aproximar da pessoa devido à interposição da vara de metal. Torna-se assim fácil um segundo elemento injectar um sedativo. E assim foi. Não o consegui sem alguma resistência e durante a manobra acabou por urinar e defecar na sala. Enfim, um circo!
A dose estava dada, o canito parecia calmo, retirei o laço e encolheu-se novamente debaixo do armário. Aguardei que a química fizesse o seu trabalho e tratei de ir limpar os dejectos, pois aquela hora os funcionários da limpeza já se haviam recolhido ao aconchego dos lares. Sai até à dispensa dos materiais de limpeza. Ao chegar de novo à sala com balde e esfregona eis que o impossível aconteceu: Veloz e fresco como uma gazela o cão passou por mim a correr. Larguei tudo e corri a trás dele. E logo correram os vinte marmanjos atrás de mim. Correr não é o meu forte mas naquele momento superei-me a mim mesma e corri como se a minha vida dependesse da velocidade dos meus passos. O edifício era enorme. A porta dos fundos estava aberta, à espera do jipe que tinha saído para uma consulta de grandes animais. Foi por lá que ele escapou. Chovia. A chuva não conseguiu abranda-lo nem a ele nem a mim. Mas era uma luta desigual: eram quatro pernas contra duas. Consegui chegar ao portão da universidade antes do coração me sair pela boca mas já o havia perdido de vista. Parei e todos pararam em meu redor. E agora? Regressados à sala mandei-os para suas casas. Ficaram alguns. Dirigi-me à sala onde aguardavam os donos do animal. Era um casal de velhotes de uma aldeia perdida algures no meio do Alvão. Tipicamente transmontanos. Ele de boné, ela de lenço, simples e humildes.
Calmamente tentei explicar o caso. Ecoaram pelo edifício os gritos da mulher. Insultou-me usando todos os impropérios e obscenidades que a língua portuguesa permite. Dizia que lhe tinha matado o animal e lhe estava a mentir. Mesmo quando o aluno lhe mostrou a mão mutilada continuava a teimar: Malditos sejam! Assassinos! Todos os que aqui trabalham! O homem tentava acalma-la em vão. A cena durou uma eternidade. Até que um aluno mais clarividente surgiu com uma ideia. Sugeriu ao senhor que ambos saíssem em busca do animal no seu carro. A minha esperança era nula. Mais tarde ou mais cedo o sedativo haveria de o ter posto a dormir. Imaginava-o deitado numa valeta, à chuva, a sucumbir de hipotermia, transformando as acusações em factos verdadeiros Imaginava-me já em tribunal em frente a um juiz que me condenava quando a porta se abriu e o homem entrou com o bicho ao colo, feliz e contente, a abanar o rabo, a saltar para a dona, são como um pêro. Tinha sido encontrado a cinco km dali.
Só nessa altura pude olhar a velha na cara e dizer-lhe: “ Então? Matei o seu cão?”
Logo me arrependi de a ter enfrentado pois recomeçou o chorrilho de palavrões, ameaças e profecias malignas.
“ Desculpe senhora doutora, a minha senhora está muito nervosa. Sabe como é...é transmontana... Nós vamos para casa. Ela logo acalma e nós depois voltamos cá com o nosso menino para o tratar.”
Rezei para que não tornassem. Fui ouvida por Deus. Até hoje desconheço o nome do cão e a doença de que padecia.