Lar, doce lar
O meu lugar. Que não tem meu nome, mas que o aluguel em dia o faz meu e não há o que discutir. Lugar que tem minhas cores, meus quadros e desenhos na parede, os objetos que adornam no seu interior e toda a minha bagunça. Ah, "se essas paredes falassem". Lugar do chão esburacado na sala, do encerado da cozinha com sua geladeira bege da cor do assoalho do quarto. Quatro cômodos, três janelas, três portas e uma que não tranca. Tudo ali tem meu suor, meu cansaço, minhas lágrimas, minhas alegrias, minhas poesias ou coisa que o valha. Teve os amores, ah, os amores. As amadas e namoricos na garagem, com os testemunhos do pé de tangerina e do de limão. Lugar que meu sangue já lavou o chão. O quintal, que tanto brincava, por vezes sozinho e tantas outras cheio de amigos. Sujava toda a roupa, mas lavava a alma. O gosto de debruçar na janela, por tantas vezes sem ter o que fazer, onde o nada é o que ocupa, vendo as estrelas branquinhas, a lua algoz, do céu azul escuro, ligeiramente cinza das nuvens. Chacoalhando os pensamentos como sempre, os nomes, os amores, as injúrias. Imbecil. Fraco. Com os mesmos ossos magros nos joelhos, que adoram abraçar um corpo quente em dia de frio, em dias sem títulos, onde o que restou foi a poesia sobre o lençol imundo de histórias que me sustentam, ouvindo a chuva, junto ao encosto da cabeceira. O mesmo colchão embolorado. Vivo, desde os tempos de menino. Agüentou por vezes o corpo pálido, efêmero, cansado, embriagado. Templo que acolhe, protege a carne do frio, da chuva e toda minha melancolia, da amargura ou coisa parecida. Pena que não protege das lembranças, aquelas que nem queria lembrar, que cada gota trás, pelo forro do telhado. Barulhento. Não tanto quanto o ruído do assoalho do quarto ou o ranger da porta do banheiro, que tem o espelho mais narcisista que conheço. Berço que guarda minha vida, pai, mãe e o fiel escudeiro quadrúpede, de meio metro. Meu companheiro Pinscher. Lugar de paz, de brigas, afetos, família, paixões, tristeza, sonhos, alívio (...). Lugar que desde pequeno, desde a primeira vez que ralei o joelho, tem tantas histórias pra contar. O meu amargo lar, doce lar.