IRMÃOS QUE FIZ NO QUARTEL

Hoje, no ônibus, vi o Domingues, um guri moreno que foi meu colega de quartel. De vez em quando o vejo no ônibus de caminho para o trabalho, mas nem sempre consigo cumprimentá-lo e falar com ele. Mas sempre gosto de fazer, pois o vejo ainda como aquele mesmo guri quieto, amigo, dentro daquela farda verde que nos aproximou tanto, que nos fazia indistinguíveis uns dos outros, que nos deu compartilhar tantos momentos difíceis e outros tantos em que sorrimos das dificuldades quando ainda sofrendo com elas.

Hoje, porém, ao ver o Domingues com sua cara serena, após revermos na imaginação cada um dos vultos dos nossos companheiros de caserna, alguns que ainda vemos, como o Esquilo, de nome de guerra Ezequiel, e o Assombroso, de nome de guerra Pereira, que moram em nosso bairro, como também o Marcelo, que já não tem uma perna, o Spelmaier, que é contador e mora em Ivoti, o Bitencurt, meu colega desde o colégio São Luiz, que o Domingues me disse que morreu anos atrás, o Gaudério, de nome de guerra Joel, o qual vejo de vez em quando, o João Pilar, que morreu em 1998, depois que o encontrei após quatorze anos que não o via, o Carlos 313, mais conhecido por 13, um amigão muito louco, que atormentava a mente e o orgulho do tenente Ely, o Cruz, o Honório, e tantos outros, bem como o Cabeção, o capitão Rossi Machado, comandante de nossa bateria – após essa revisão rápida, fiquei vendo o Domingues se afastar do ônibus depois que desembarcou e pensei o que nos fazia tão próximos, tão receptivos e afeitos uns aos outros, ao ponto de, quando nos encontramos após tantos anos, não considerarmos o tempo que passou, mas ter-nos como há vinte e cinco anos atrás, os mesmos meninos que se imaginavam homens, que sofriam nos campos de treinamento apoiando-se na confiança de que o companheiro estava suportando as mesmas agruras; na certeza de que cada um deles não nos deixaria sofrer só, mas estaríamos sempre juntos nos ajudando a suportar o medo e o desconhecido.

Na verdade, me dei conta que somos irmãos, que o Exército nos tornou assim ao nos hostilizar, e cada vez que encontrarmos uns aos outros seremos íntimos como os irmãos, tendo os pecados cometidos entre este tempo e o passado perdoados, podendo então relembrar os defeitos e virtudes que nos fizeram pôr apelidos e rir dos apelidos que nos punham, dos apelidos que pusemos uns nos outros, dos micos que pagamos quando erramos o braço da continência, quando nos mandaram pedir um “carpano” para o coronel e ele se riu de nossa inocência.

Há muito tempo eu encontrei o Adilson, o 01, na verdade 301. Eu era o 386, quase o último da chamada, como sempre. O Adilson era um grande e sereno amigo. Como poderíamos nos imaginar em um campo de batalha real matando outros garotos iguais a nós? Mas estávamos entre os melhores em nosso quartel, os que melhor correspondiam ao treinamento. O Adilson lidava com um pequeno computador na central de tiro, onde se calculava as coordenadas para as cargas de nossa bateria. Eu era o rádio-operador da central de tiro, quando não estava operando o rádio no Jeep do PO – observador avançado, e vendo as cargas de artilharia passando por sobre nossas cabeças para destroçar o chão dois quilômetros à frente.

No início de 2005 encontrei o Adilson depois de vinte e um anos que não o via, desde que saímos do quartel. O vi em um balneário onde estava acampado. Ele estava na piscina com sua esposa e filhos no final da tarde. Ele era o mesmo, a mesma cara amigável e inocente daquele tempo. A esposa era linda e os filhos, quem diria, já eram quase adultos. De repente me dei conta que nós, os meninos do 16 GAC de 1984, já éramos pais de meninos da idade que tínhamos naquele tempo; que, embora eu não tivesse filhos, meus amigos garotos de ontem tinham e eles não eram mais bebês, levando seus pais a ser, talvez, até avós.

Todavia, apesar disso, continuo encontrando os "guris" que serviram comigo em 1984, muitos dos quais estiveram de prontidão em março de 1985 por causa da posse do presidente eleito, Tancredo Neves, que faria a transição do regime de ditadura militar para o tempo em que se poderia votar diretamente para presidente da República. Não tínhamos consciência definida do que foram os anos de chumbo, pois quando aqueles dias duros tiveram início e estiveram no auge éramos criancinhas, mas agora éramos os soldados de prontidão por causa que o presidente eleito baixou a UTI às vésperas da posse e ninguém sabia se ele fora acometido de uma infecção generalizada ou tinha sofrido um atentado.

Quanto a nós, porém, queríamos mesmos era dar baixa do Exército e dar início à vida que nos trouxe até aqui, quando encontramos com saudade os irmãos que sofreram e riram conosco, os “guris” que foram nossos companheiros de quartel. Mas, por causa de que o caso da morte do que teria sido um presidente muito popular se arrastou por vários dias, nossa baixa se atrasou em muito. Só não atrasou a chegada até o momento atual, quando temos o privilégio de reencontrar nossos irmãos de farda, relembrar e sorrir até dos momentos ruins que passamos juntos, os quais até nos trazem felicidade, pois estão na primavera da nossa vida, quando nosso coração era ainda criança querendo conhecer as pessoas e o mundo.

Wilson do Amaral

Autor de Os Meninos da Guerra, 2003 e 2004, e Os Sonhos não Conhecem Obstáculos, 2004.