O Inferno são os Outros

O Inferno são os Outros

suzabarbi@hotmail.com

Fazia minha habitual caminhada, às cinco da manhã, na Praça da Liberdade.

Para mim, mais exercício espiritual do que físico.

Bato os maiores papos com meus amigos superiores e invisíveis, que protegem o meu dia.

E olha que tem dias que dou a maior canseira neles...

Sempre gostei de caminhar sozinha.

Evito qualquer companhia para aproveitar melhor esse momento único do dia: exercitar a difícil arte da introspecção, coisa totalmente adversa ao meu jeito falante e “gesticulante” de ser.

De repente, ao meu lado, passam dois senhores, provavelmente da minha faixa etária, o que me leva a pensar que estou naquela idade que ninguém é mais tratado apenas por um simpático “você”.

Um deles fazia um longo monólogo para o outro.

Apenas ele falava.

E como falava...

Contava, ao pobre coitado do companheiro de caminhada (ou de infortúnio), que em 1996, comprou um imóvel num condomínio tão sofisticado, que os apartamentos foram apelidados de "gaiolas de ouro".

Gaiola de ouro?????

Horrorizei!

A altura de voz dele era totalmente imprópria para aquela hora da manhã, o que me levou a pensar se o propósito não era contar para a praça inteira a compra da tal gaiola.

Acelerei o passo para não ouvir mais absurdos.

A idéia de morar numa gaiola, mesmo que fosse de ouro, não era a melhor maneira para eu começar meu dia.

Mas a voz dele era tão alta que, mesmo já a certa distância, continuava escutando o esdrúxulo monólogo.

– O apartamento é uma beleza. São cinco quartos e tem oito vagas na garagem.

Tomei susto. Oito vagas na garagem? Isso é um apartamento ou um estacionamento?

Curiosa, olhei para trás.

O coitado que o ouvia tinha estampado no rosto o mais profundo e indisfarçável tédio.

Mas o outro, em cima da sua inacreditável pose (às cinco da manhã!), continuou:

– E imagine você que na época consegui comprar o imóvel pela bagatela de um milhão de dólares!

Parei estarrecida (e quase levei o maior tombo).

BAGATELA???

Quem era aquele, afinal?

Bill Gates disfarçado de cidadão belo-horizontino?

Será que alguém que considera um milhão de dólares BAGATELA, caminha às cinco da manhã, na Praça da Liberdade?

Quem mora numa “gaiola de ouro”, não tem que andar com segurança não?

Quem tem oito vagas na garagem, não era para ter também a sua própria academia, com direito a personal trainner ?

Olhei para o atônito companheiro que escutava aquele festival de papo ruim e vi que ele também tinha desistido.

Deu um breve tapinha no ombro do outro e saiu correndo.

Literalmente.

Acho que a partir dali, incluiu a corrida em suas atividades físicas matinais.

Fico imaginando se não está correndo até agora.

Provavelmente, de susto.

Ou de raiva por ter sido o alvo de tanta baboseira.

Tenho muita dificuldade para entender o que leva as pessoas a dizerem coisas absolutamente sem propósito.

Acho que o mundo está sem assunto.

E sem educação.

Numa agradável manhã de verão, tem gente que acha lindo contar que mora numa gaiola.

De ouro.

Tomara que a gaiola seja segura o suficiente para não soltar pássaro tão soberbo.

Ele livre tornaria o mundo mais triste.

E as caminhadas, nas manhãs de nossa cidade, insuportáveis.