Tons do Tempo
O menino tocava sua gaita de boca na rua. Era noite e chovia. Seus olhos estavam ofuscados pela chuva e pelo choro. Não sabia ainda por que chorava. O pranto começara depois da angustia que prendeu seu peito. A angustia ele não sabia de onde vinha. Agora ele não sabia mais o que era chuva e o que era lágrima. Não sabia mais se a gaita tocava ou se a alma gritava.
A angustia apertou. O quarto apequenou. E na rua teve que buscar alento. Andou quadras e quadras, pessoas iam e viam. Os rostos eram de cera. Os cabelos eram pintados. Os passos eram em falsete e a vida em cavalete. Parecia uma tela mal pintada de um pintor que pintava para agradar alguém.
Ele não era mais menino, mas guardava algo que dava uma aura de menino. De pintor que agrada ele nada tinha. Não conhecia cores, não rabiscava quadros e muito menos agradava. Decidiu que numa tela não podia ficar. Melhor era ficar numa música. Correu ao apartamento e pegou o violão. Desceu as escadas e o violão pesou no braço. Sua cor era escura, seu corpo desengonçado e suas notas desafinadas. Parecido demais comigo, pensou o menino que não era mais menino. Correu as escadas de volta e pegou a gaita. Ela era pequena. Podia jogá-la na sua alma se essa saísse correndo. Ia parar mas não machucar.
Correu por costume. Sabia que de nada vala correr. Correu por que seus sapatos são tão macios quanto podem ser. Correu porque os mosquitos viraram gente e agora nos perseguem. Correu porque sabia que andava em círculos e que voltaria ao mesmo lugar mais rápido. Ele queria estar ali. Só não queria que fosse numa tela. Nem que a música fosse de violão.
Andou com a gaita no bolso da jaqueta. Ventava forte e seus cabelos voavam. Voava um por um, e a cada dia ele ficava mais careca. A cada dia ele ficava menos menino. E aquela coisa que ele guardava e ninguém sabia explicar o que era ficava mais guardada. Ele ficava mais guardado. Queria agora ser musica de gaita. Tela todo mundo olha. Violão todo mundo entende. Gaita só acompanha.
Ele queria se guardar no acompanhamento da vida. Daquela que anda em círculos e que traz no tempo o tempo que já passou e o que já não queríamos mais. Queria acompanhar aqueles malditos momentos que tentamos esquecer e de repente voltam no circulo louco da vida. E quando déssemos de cara com os despojos do fato mal enterrado, ele queria tocar uma música. Música na gaita. Música de acompanhamento.
Acompanhar fatos mal enterrados seria sua vida. Não acompanharia boas lembranças. Deixe essas ao som do piano. Não acompanharia memórias decisivas de vidas decididas. Para isso deve existir alguma coisa para acompanhar. Acompanharia os fatos dos acovardados. Aqueles fatos que deixamos para resolver amanhã. Aquele namoro que terminaria amanhã e acabou em divórcio e guarda compartilhada. Aquele maldito emprego que seria abandonado amanhã e hoje virou câncer. Aquela última tragada antes de viciar e agora virou enfisema.
A vida dele seria a volta do que não foi. Mas não vivida em imagens. Muito menos em letras. Seria vivida ao som da gaita. Em cada momento crucial de reencontro com a verdade que tinha sido escondida ontem, ele estaria vivendo ao som da gaita.
Subiu o morro. Olhou a cidade. Percebeu que tinha muita vida pra viver. Muitas notas de gaita para tocar. Foi aí que a angustia veio. Agora ele lembra. Não tinha aprendido a tocar gaita ainda. O choro veio pela angustia e pelo horrível choro que ele fazia na gaita. E eram lágrimas mesmo. Chovia só na sua alma. Era noite só na sua alma. O vento levava apenas o seu cabelo. Era dia e estava sol, quente. Lembrou também o que era aquilo que ele guardava que o deixava um menino que não é mais menino. A certeza que tem muito ainda para viver.
Voltamos para dizer. Voltamos para explicar