Cinderela do terceiro milênio

Olhou-se no espelho antes de se atirar sob a cascata de água morna do chuveiro. Mirou os cabelos castanhos caindo desalinhados até abaixo dos seios e depois encarou os próprios olhos emoldurados pelo sombreado das olheiras. O olhar refletido no espelho era de puro cansaço. Precisava dar um jeito naquela imagem moribunda, se quisesse parecer viva na grande festa.

Deixou a água despencar sobre si. Lavou os cabelos com o xampu SEM SAL recém comprado e, em seguida massageou-o com o condicionador de queratina que (conforme prometia no rótulo) devolveria o brilho perdido em meio à poluição da rua, daquele dia estafante.Desligou o chuveiro, um pouco mais revigorada e pronta para iniciar a transformação.

Creme de morango com champanhe para o corpo. Loção tônica para o rosto. “Leave in” nos cabelos úmidos.Hidratante “pós- loção tônica” para o rosto. Secador, escova, chapinha,toca... Secou o suor que escorria entre os seios e aproximou o rosto do espelho. Corretivo, base, pó, sombra, delineador, lápis, blush e gloss. Depois de mais de uma hora o resultado começava a aparecer.

Aproximou-se da cama e observou os quatro vestidos estendidos sobre ela. Suspirou fundo e tentou adivinhar qual das quatro cores lhe daria mais sorte naquela noite. Preto lhe garantiria classe. Vermelho lhe envolveria de sensualidade. O azul sugeriria mistério. Dourado, glamour. Centenas intermináveis de segundos depois, viu-se envolta pelo cetim vermelho do tomara-que- caia que descia até os sapatos prateados. Queria ficar irresistível para ele...Torcia para que ele estivesse na festa.

Maneou a cabeça soltando os cabelos lisos e brilhantes. Prendeu os brincos de strass e enfiou a mão no conjunto de pulseiras do mesmo material. Esborrifou o perfume francês favorito nos pontos estratégicos. Lançou o celular para dentro da bolsa prata. Analisou uma vez mais a imagem projetada no espelho e sorrio satisfeita. Ficara linda! Apanhou a chave do carro e partiu.

Subiu os degraus que levavam até o grande salão sentindo-se tensa e ao mesmo tempo ansiosa. Avistou um grupo de amigas ao qual se uniu trocando, efusivamente, beijinhos e elogios. O garçom lhe ofereceu um drinque. Os olhos passaram a procurar em volta. O sorriso tenso, o coração acelerado... A bebida esquenta, o corpo relaxa. A música envolve, o corpo dança. Os olhos procuram em volta. E encontram.

No lado oposto do salão ela o reconhece. O causador de sua insônia. O protagonista de seus sonhos. O dono do beijo doce que lhe roubou a paz levando junto o seu coração. O corpo pára! O peito prende a golfada de ar que lhe machuca o estômago. Entre dezenas de rostos sorridentes seus olhos distinguem a cena que jamais desejaria ver. Ele está ali!... Beijando outra mulher.

A dor golpeia-lhe os sentidos. O relógio avisa que ainda é cedo, mas para ela é hora de partir. Na fuga desesperada tropeça num degrau da longa escadaria e vê seu sapato rolar até a calçada. Levanta-se torpe de humilhação... O “ príncipe” continua na festa e nem sequer imagina que existe um sapato perdido, um pé descalço e um coração partido. Recolhe o sapato e calça o pé dolorido. Entra no carro e grita toda a dor.

Naquela noite, entre lágrimas e soluços, ela descobre que, assim como fadas madrinhas não surgem do nada para ajudar as cinderelas apaixonadas, não é preciso ser uma bruxa para transformar (da noite para o dia) moços adoráveis em abomináveis anfíbios.

“Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos reais terá sido mera coincidência...ou não".

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 05/02/2009
Reeditado em 05/02/2009
Código do texto: T1423622