Tio? Eu?

Tio? Eu?

suzabarbi@hotmail.com

Acordou acreditando que precisava de uma boa reciclada.

Nada como o início do ano para reavaliar alguns conceitos.

Depois da separação e custódia da filha de 16 anos, achou que precisava rever sua vida profissional, espiritual e, porque não, a estética também.

Aproveitou as férias para atacar a primeira das etapas: a barriga. Uma boa caminhada no calçadão de Copacabana, apreciando aquele marzão a sua frente.

Depois, um alongamento ali mesmo, naquelas barras que, em tempos de barrigas magras, ele nem sonhava um dia usar.

Estava animado. O dia ensolarado era um convite à alegria.

Férias!

Queria esquecer por um bom tempo a sala sem janelas, com o ar condicionado ligado nos constantes 17 graus.

Não importava se fosse inverno ou verão.

Só sabia a real situação metereológica do dia através da previsão do tempo vista na televisão ou no banheiro do escritório, único lugar que não tinha o bendito ar.

Mas tinha janela!

Afinal, do prédio ao lado podia-se ver tudo o que se passava ali.

Coisa muito constrangeradora.

A janela vivia fechada.

E o banheiro uma estufa.

Um dia saiu com um cliente para almoçar num restaurante muito chique da cidade.

Chique demais para nome tão esquisito: O Porco Amigo.

Quem em sã consciência vai almoçar num lugar com um nome desses?

Ele foi.

O cliente, homem gordo e de hábitos nada saudáveis, sugeriu feijoada, prato chefe da casa.

Ele, vegetariano confesso, não teve como rejeitar.

A conta do cliente valia o sacrifício.

Ao voltar para seu cubículo gelado passou a escutar um barulhão.

Acionou D. Marta, a secretária, para que ela lhe falasse se tinha alguém mudando no andar de cima da empresa.

D. Marta informou:

- Daqui não vejo nenhum movimento de mudança, senhor.

O barulhão vinha da sua barriga.

O Porco Amigo não passava de um bom espírito de porco!

Agora estava ali.

Ele e o mar

O mar e ele.

Abriu os braços, inspirou o cheiro das ondas, quando sentiu um toque no ombro.

Ninguém menos que sua ex!

E ao lado de um homem!

Homem não! Um rapaz.

Rapaz nada! Um me-ni-no!

Sarado.

Pinta de surfista.

Corpo todo tatuado.

A mulher devia estar louca!

- Gegê? Que mundo pequeno!

- Aproveitando as férias e a viagem da Lu pra Disney. Tá lembrada que sua filha foi pros Estados Unidos?

- Olha o humor, querido! Estamos de férias. Deixa te apresentar. Este é o Melão. Melão este é o Gegê. Na verdade, Geraldo, mas a gente costuma chamar ex marido de tudo...

- E o Melão tem nome?

- Stanislau. Muito complicado pra falar.

- Claro! Nessa idade, é difícil falar tanta letra junta...

- Não precisa, Gegê.

- Não precisa o quê?

- Falar...

- Que eu saiba todo mundo precisa articular a + b.

- Mas ele não. Com esse corpinho, querido, falar é a última coisa que ele precisa “articular”.

- Marilene, se dê o respeito. O quê o menino vai pensar de você?

- Já pensou Gegê. Já pensou.

E saiu toda rebolando, deixando um Gegê roxo de raiva nas barras de alongamento na praia.

Acordou com o telefone tocando. Era o seu chefe pedindo-lhe que interrompesse por algumas horas as férias e fosse até um estúdio de televisão, gravar uma entrevista sobre o último “case” da agência. O convite tinha sido feito de última hora e ninguém melhor do que ele, que já estava no Rio, local da gravação, para falar sobre o assunto.

Contrariado, saiu do hotel às pressas, já atrasado.

Nenhum táxi à vista.

Correndo, atravessou quatro quarteirões para encontrar um ponto com apenas um táxi.

Maldita cidade em tempo de férias!

Entrou nele bufando e pediu pra tocar para o estúdio.

Lá chegando, viu que a carteira, na correria, tinha ficado no hotel.

Atrasado, sem carteira, sem dinheiro, pediu ao motorista que parasse em frente ao banco para que ele tirasse o dinheiro.

Foi aí que seu mundo ruiu.

Mal, mal conseguia enxergar o caixa eletrônico.

Estava de lente de contato para longe e tinha esquecido os óculos para perto.

Não conseguia enxergar nada que estivesse a um palmo de distância.

Gelou.

Lembrou da entrevista.

Como leria as perguntas?

Como enxergaria suas anotações?

Amaldiçoando a vista cansada, tirou a lente esquerda, tampou o olho direito, retirou o dinheiro, pagou o motorista, pôs a lente na ponta do dedo para enfiá-la de novo no olho.

Foi quando viu que ela já não passava de uma massa disforme em suas mãos suadas.

Malditas lentes gelatinosas!

Foi um Gegê cambaleante que deu entrada aos estúdios da televisão, enxergando pela frente tudo pelas metades, incluindo a entrevistadora, que jurou que ele sofria de labirintite.

No caminho de volta para o hotel viu a ex numa sorveteria (logo ela que detestava sorvete) aos beijos com o infante.

Foi demais para ele.

Ligou para a companhia aérea e marcou para o dia seguinte sua ida para Salvador.

Queria estar bem longe dos sinais de sua velhice, digamos assim.

No resort anunciavam uma imperdível noite baiana, com muito axé, olodum e mil tambores.

Esfregou as mãos e pensou na noite incrível que teria.

Colocou uma roupa pra lá de casual e foi se meter na festa.

Tomou o primeiro drink (baiano com certeza) e ficou ainda mais animado.

O ritmo era contagiante e ele já até ensaiava, sozinho, um gingado desengonçado.

Para sua surpresa, uma jovem cor de tabaco, linda de morrer, chegou perto e perguntou com um sotaque que o fez sair do chão:

- Quer dançar, meu rei?

E o rei quis.

Numa ginga quase invertebrada, ela começou a lhe mostrar os passos de uma coisa que mais parecia a dança da cobra.

E ele ali, para esquecer os sinais de sua velhice, digamos assim, tentou acompanhar a baianinha.

Na primeira agachadinha tiveram que chamar os paramédicos.

Não ficou de cócoras o resto das férias porque a baianinha o levou para o terreiro da Mãe de Todos os Tios Quebrados.

De pé novamente, resolveu encarar com mais leveza os sinais de sua velhice, digamos assim.