Pra Fazer Chorar o Duda

Ela chegou lá em casa, com cerca de dois anos, trazida por um amigo da família. Minha mãe não queria mais trabalho, cansada, às voltas com seis filhos pequenos. Mas ante a nossa insistência e a carinha de fome dela, ela foi ficando. Seu nome era Samantha, em homenagem à Feiticeira, personagem do seriado homônimo estrelado por Elizabeth Montgomery. Talvez porque ela tivesse mesmo alguma coisa de encantamento.

Ela devia ter algum sangue de Fox Paulistinha e de Daschund. Era branca, malhada de marrom como o primeiro, baixinha, compridinha e de patinhas curtas como os Cofaps. Uma coisa é certa: tinha o temperamento de um Royal Street Dog.

O que fazia de Samantha um animalzinho realmente especial, talvez fosse sua condição de antítese ao Marley. Se o enlouquecido e trapalhão Labrador de Grogan pode ser considerado o pior cão do mundo, nossa vira-latinha era, com certeza a melhor cadela do universo. Quando queríamos, tínhamos um cão, com todas as vantagens disso. Quando estávamos mais ocupados com outros afazeres, ela apenas ficava ali.

Sua casa era uma caixa de papelão, da qual ela só saia para “ir ao banheiro”, comer e beber água. O resto do tempo passava dormindo ou vigiando a gente.

Bons tempos aqueles. As portarias do prédio ficavam abertas. Quando a cadelinha sentia vontade de se desapertar, saia de sua caixinha e sentava em frente à porta da cozinha. Quem a via ali, entendia o recado e abria a porta para ela.

Quando queria voltar pra casa, ela subia as escadas sozinha e latia na nossa porta. Abríamos e ela enfiava-se novamente na caixinha.

Depois, com o aumento da violência urbana, a portaria passou a ficar trancada. O ritual mudou um pouco: abríamos as portas do apartamento e da portaria. Quando ela terminava, latia para o porteiro deixá-la entrar.

Esta rotina só era modificada quando ela entrava no cio. Aí, fazia-se necessário acompanhá-la. Talvez nem precisasse deste cuidado, ela atacava às dentadas qualquer pretendente que se aproximasse, não importava seu tamanho. Enquanto esteve conosco, manteve o celibato.

A cachorrinha tinha custo zero. Comia restos de nossa comida, servidos numa folha de jornal. Num pote de margarina matava a sede. Nunca comeu ração ou biscoitinhos caninos, mas se refestelava com belos ossos de galinha. Banho, era eu quem dava, no tanque de lavar roupa, com sabão de coco. Não tomava vermífugo, jamais viu um veterinário. Só era vacinada anualmente contra a raiva, nas campanhas do governo. Colocava-a em minha mochila, só a cabeça de fora e ia pedalando até um dos postos de vacinação. Eu ficava orgulhosa dela, que apenas engolia em seco quando recebia a agulhada.

Apesar de tudo, ela era alegrinha. Costuma receber-nos com o rabinho abanando, mesmo que não deixasse seu ninho. Quando descíamos com ela, gostava de brincar, corria feliz conosco, como qualquer cãozinho.

Ela era do meu irmão, Duda, que, provavelmente, serviu de inspiração à Warner para a criação da Felícia em Looney Toones. Implicante, ele estava sempre incomodando a coitadinha. Assim, ela não era muito fã dele, tendo-me adotado com o alvo de seu amor incondicional.

Uma vez, ele pegou um grande calendário onde havia uma foto de cachorro e, enquanto imitava rosnados, ficou sacudindo sobre ela, encurralada em sua toca. Ela mostrou os dentes, irritada. Então ele me entregou o calendário e eu o abaixei, exibindo-me para ela:

- Sou eu, Sam!

Ela ficou com vergonha! Já viram cachorro com vergonha? Pois é. Abaixou a cabeça olhando-me de baixo, submissa, como se dissesse:

- Puxa! Me desculpe! Como eu ia adivinhar que era você? Me desculpa, por favor...

Com o passar dos anos, ele amadureceu e foi, aos poucos, conquistando seu coraçãozinho. Ele a chamava de Caranéia, numa época em que gostava de inventar palavras... Não sei de onde tirou esta, mas era pronunciada com enorme carinho.

Já no fim de sua vida, ela foi ficando cega, de tanto bater o olho na quina da porta quando estava muito ansiosa para sair. Tirando isso, tinha uma saúde de ferro.

Morreu de velha, durante o sono, cerca de quinze anos depois de ter sido adotada por nós. Seguiu seu rumo com a mesma suavidade e mansidão com a qual havia vivido.