Ensaio sobre o Tédio
Não sei, acho que foi o Quino, aquele desenhista argentino, criador da personagem Mafalda, quem fez essa tirinha genial: está o desenho de um homem diante de uma corda cheia de nós, onde seu maior problema consiste em desatá-los. Esse homem peleja, coça a cabeça, arranca os cabelos, se esgana todo diante dos nós, e no auge da exaustão, quando está pra desistir, consegue desfazê-los. Com o resultado fica eufórico, dá pulos incontidos de alegria. E passado o calor da euforia, vem a calma, a conformação, a pasmaceira, e por fim, o tédio, o terrível tédio!
O interessante nessa tirinha do Quino é porque ele conseguiu ilustrar de maneira simples o grande drama humano diante do sentimento do tédio. O tédio é um velho conhecido do homem, podemos dizer que este acompanha e sempre acompanhou o homem desde quando este se entende como tal. Tiro por mim mesmo: um dos motivos que me levam a escrever essa crônica nesse exato momento, além de não ter nada o que fazer (ou dispensado as milhões de coisas que poderia ter feito), é o tédio.
Ora diacho, mas o que é o tédio, afinal? Perguntam-me os ignaros leitores. Ora, então quer dizer que os senhores não sabem me dizer o que é o tédio? Nessa idade, depois de anos de escola, não sabem responder nem discorrer sobre uma coisa tão óbvia?... Quer dizer, sabem quando sentem, mas não conseguem defini-lo num conceito filosófico? Ah, pobres leitores, meus irmãos em ignorância: confesso que também não sei. Nunca soube, e é provável que a depender da minha burrice aguçada jamais saberei. Burrice que não me impedirá de buscar saber o quê que é. Sou burrinho, porém curioso. Posso dizer que minha burrice é inversamente proporcional a minha curiosidade, e talvez isso ainda me salve: ou me mate tal como matou o gato!
Dizem por aí que o titio Sartre já dedicou muito tratado de filosofia para discorrer sobre o tédio. Poderíamos até consultá-lo mais tarde. Mas agora não, estamos todos com preguiça e com fome, e vamos ler o resto dessa crônica que se pretende mais ligeira do que qualquer tratado filosófico.
Ora, quando me bate um vazio no estômago, como esse que estou sentindo agora ao escrever essa crônica, é sinal de que estou com fome e que preciso comer algo para saciar essa mesma fome: antes que ela me mate. A inversão dos fatores, por outro lado, não alteraria em nada a idéia na sua essência: afinal, podemos dizer também que a fome é um sinal de que a barriga está vazia. Quando bate o tédio é a mesma coisa. O tédio é fome, mas fome de quê, meu Deus?
“O tédio, tal como a fome, é sinal de algum vazio”: responde-nos Deus. “A única diferença é o que o vazio não está na barriga...”. E nos perguntamos com a cabeça atravessada de dúvidas: vazios de quê, afinal? O que me falta? Porque de repente esse tédio, esse vazio? É a falta que ela me faz? Ela, Marília? Ou é a obra-prima que não escrevi? Será a falta de Jesus no coração? A vida inteira que poderia ter vivido e não vivi?
Porquê de repente esse vazio absurdo dentro de mim, esse vazio inexplicável? E porque esse mesmo vazio se desfaz quando estou fazendo algo? Por exemplo, amando Marília? Por exemplo, ouvindo uma música? Por exemplo, fazendo um poema?
E porque esse vazio me volta, cada vez mais terrível e mais monstruoso, quando não estou fazendo nada? Porque o mesmo é tão violento quando estou as 14 e 47 horas da tarde sentado diante da televisão assistindo programas idiotas, tipo Vídeo Show e Vale a Pena Ver de Novo?
Todos vocês, meus leitores e irmãos em ignorância, me perdoarão. Pois não saberei responder todas essas perguntas, e nem tempo e espaço teria pra isso. Mas acho que o nosso amigo Paulo Freire poderia iluminar essas trevas com sua simplicidade de sábio: dizia ele que o homem, diferente da árvore e do cão, se sabe inacabado. Por saber-se inacabado, diz-nos Freire, o homem busca completar-se em algo, ou seja, o homem busca ser mais. E onde o homem busca ser mais? Na criação, responde-nos o amigo Paulo. O homem é essencialmente criativo, ele sempre está refletindo e transformando a própria realidade. Ele parte da constatação do seu vazio existencial para lançar-se na criação, que o completa como homem.
Me aproveitando das luzes que Freire me deu, afirmo que o que me sacia a fome é a comida do meu pai; e o que me sacia o tédio é a criação dessa crônica. Sabendo-me incompleto, busco minha realização em rabiscos metidos a sebo. Já meu pai busca na criação de pratos saborosos. Vejam, sou burro mas estou aprendendo!
Estou tão inspirado que pensei em algo que daria uma fábula. Pus-me a imaginar, de repente, uma formiguinha entediada. Como seria uma formiga entediada? Imaginem uma formiga-operária trabalhando todos os dias, fazendo sempre as mesmas coisas chatas, indo e vindo pra lá e pra cá com uma carga pesadíssima nas costas, sempre assim, todos os dias, sem férias remuneradas, sem descanso nem fim de semana. De repente a Formiguinha tem um estalo, sente um vazio enorme por aquela vidinha monótona e rotineira que leva; e fica a contemplar a Cigarrinha que canta todos os dias enquanto ela fica ali na dureza do trabalho. A Formiga se põe a pensar um monte de coisa. Sente um tédio danado, se deprime pela própria condição de formiga-operária. De repente, contrariando toda a lógica de sua sociedade, decide virar cantora também, tal como aquela Cigarra. É claro que a sociedade não vai permitir; e é até possível que a Formiga-Rainha mande decapitá-la por subversão. As outras formigas, intimidadas pela punição, continuarão pacatas, levando a mesma vidinha de sempre, chata, monótona e cansativa. Mas não continuo a fábula, é só uma idéia que me passou voando pela cabeça.
Só me dói na alma saber o quanto de formiga pacata tem por aí no mundo. Poderíamos ser um bando de formiguinhas desobedientes, assim recriaríamos a nossa maneira de se relacionar uns com os outros, de maneira mais livre, mais fraterna, mais bonita. Em vez desse estúpido “cada um por si”, poderíamos criar algo mais decente...
Mas não criaremos algo mais decente com palavrinhas bonitas, e nem acho que essa crônica vá contribuir para isso... Querem saber de uma coisa? essa crônica não vai servir pra nada! Cansei de bancar o cronista! Meu Deus, quanto rascunho para chegar a esse resultado! A esse pífio resultado! Que poderia eu esperar de uma cronicazinha que será publicada num site e que logo será esquecida, diante do olhar distraído de centenas de leitores? Ah, meu Deus, quantos rascunhos pelo caminho para chegar nisso! Que tédio enorme até o momento da composição! Que sofrimento! Uma tarde inteira perdida para rascunhar e rascunhar um monte de palavras inúteis. Uma tarde lindíssima se passou lá fora enquanto eu fiquei aqui fungando em cima do papel atrás de algo... Algo que não sei, meu Deus! Que não sei!
Eu deveria ter feito uma fábula. Uma fábula simples e sábia, que dissesse coisas bonitas. Minha fábula começaria assim: “Era uma vez uma formiguinha operária que de repente pensou...”. Só as crianças e as com coração de criança poderiam entendê-la, só elas entenderiam seu verdadeiro significado. Não, não perderia meu tempo conversando com adultos. Mas hoje não dá; hoje já perdi muito tempo nessa crônica. Hoje perdi muito tempo com os adultos. Hoje não dá... Quem saiba outro dia, meu Deus, quem saiba outro dia!
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