ANARQUIA NA GRAMÁTICA? SIM, OBRIGADO!
ANARQUIA NA GRAMÁTICA? SIM, OBRIGADO!
Nelson Marzullo Tangerini
Todo e qualquer acordo ortográfico acaba causando irritação em alguns usuários da língua.
A língua sempre existiu e sempre existirá no plano oral, independente da escrita [uma convenção], que foi inventada pelos fenícios e aperfeiçoada pelos gregos, para tentar representar o som da fala.
O que se tentou, em 2009, queiram ou não, foi aproximar o Brasil de todos os países da Língua Portuguesa, a chamada Comunidade Lusófona: Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor Leste.
Assim como existe a Comunidade Lusófona, cantada em samba, verso e prosa por Martinho da Vila no cd Lusofonia, existem também as Comunidades Francófonas [países de língua francesa] e Anglófonas [países de língua inglesa].
O acordo ortográfico que entrou em vigor na década de 1940, por exemplo, deixou o professor Nestor Tangerini, indignado – mas não mal humorado. E fê-lo escrever, com o pseudônimo DOM T., um hilariante poema, publicado na revista O ESPETO, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1947, sobre o assunto:
“ONTEM E HOJE
No meu tempo, uma senhora
se vestia por inteiro;
sim, não era como agora,
neste Rio de Janeiro.
Hoje em dia, não se zanga
o marido, se, na rua,
a mulher anda de tanga,
ou, na praia, quase nua.
No cinema, uma donzela
que estivesse a nosso lado,
resistia ao que na tela
fosse vendo interpretado.
Porém hoje, a senhorita
junto a nós, ali no escuro,
nos agarra vendo a fita,
e nos beija até, no duro.
Essa Boa, toda prosa,
cujo corpo é um violão,
que aí está toda orgulhosa,
por saber-se um pancadão,
pequenina, sentou tanto
no meu colo, entre os pais!
Hoje em dia, aqui, no entanto,
ela já não senta mais.
Até mesmo a ortografia,
de sofrer transformações,
acabou numa Anarquia,
numa escrita de senões.
Hoje só se escreve assim,
sem acento: BOA, SOA;
porém BOA, para mim,
sem “acento”, não é BOA...”
A palavra Anarquia, muitas vezes mal empregada - como sinônimo de bagunça e falta de ordem -, significa, na verdade, para os anarquistas, uma doutrina que prega uma nova ordem: os homens governariam a si próprios, não aceitariam governantes e o estado, e todas as fronteiras e religiões seriam abolidas. Uma nova pedagogia seria proposta, a Pedagogia Libertária: racional, sem religião, sem o ranço autoritário e sem idolatria de qualquer espécie – política ou religiosa. Acreditam os anarquistas que os governos, com auxílio das religiões e das leis burguesas e estatais, é que promovem o caos: a bagunça e a desordem, que causam a fome e o desnivelamento social. Qualquer fanatismo religioso ou político seria abolido.
Quem dera tivéssemos uma anarquia na Gramática. Assim, teríamos uma gramática mais libertária, menos elitista e burocrática. Porque a língua culta ou formal ainda serve para políticos espertalhões – religiosos, de esquerda e de direita - enganarem e explorarem o povo, falante da norma informal, favorecendo-se, assim, da bagunça e da desordem que vêm promovendo com a proteção estatal e religiosa até os dias atuais.
Amigo e fã incondicional de José Oiticica, o também gramático Nestor Tangerini escrevia crônicas para a revista O Espeto, na qual tirava dúvidas de língua portuguesa, usando sua conhecida verve, com o pseudônimo José Oitiçoca.
Nelson Marzullo Tangerini, 53 anos, é escritor, jornalista, compositor, poeta, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
nmtangerini@yahoo.com.br, nmtangerini@gmail.com
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