“Mãe d’água, rainha das ondas, sereia do mar...”

Marquei, durante vários verões, o dia em que se daria um dos grandes acontecimentos da estação das férias. O dia 2 de fevereiro atingiria, na verdade, seu clímax de exaltação à noite.

Para uma criança, a perspectiva de ficar acordada até mais tarde já é metade da aventura. Começava, portanto, a experimentá-la tão logo abrisse os olhos pela manhã. Depois das vinte e duas horas, entretanto, a impaciência passava a tomar conta do que tinha sido até ali, um longo dia de espera.

Saíamos enfim, eu com alguns familiares já adultos. E tão logo descíamos os poucos degraus que separavam minha casa da areia, vislumbrávamos o alarido das pessoas que se dirigiam ao mesmo local. Geralmente tudo acontecia há poucos metros dalí, o que me permitia em pouco tempo enxergar as pequeninas chamas do fogo, saindo das velas enterradas na praia.

Com passos apressados suprimíamos a distância que nos separava do culto. O círculo já estava formado. Uma corda servia para separar a gente de veste colorida das de vestes brancas e colares de contas. Sentia um arrepio quando ali chegava. Se pudesse mirar meu rosto naquele momento, com certeza, encontraria um par de olhos arregalados e uma boca comprimida pela tensão.Do lado de fora da corda, minha atenção ficava voltada para o lado de dentro, onde exuberante e cândida reinava a hipnótica imagem de Iemanjá.

Com o coração acelerado ouvia os cantos, e sabia que não eram simples palavras entoadas numa melodia diferente. Era o som da súplica, do chamado, do agradecimento. Olhava para a imagem e tinha a impressão que ela sorria, quase dançava, com os olhos voltados para o mar.

Mulheres e homens do centro do círculo permaneciam no aguardo de que algo lhes viesse tocar. E acontecia. Vez em quando um urro estranho cortava a noite me fazendo recuar alguns passos para trás. Entre os corpos maiores do que o meu, via as vestes brancas rodopiando em frenesi, até que alguém ditasse palavras desconexas, fazendo-as cessar. Outras vezes, acontecia uma corrida desenfreada em direção ao mar. Iemanjá passiva assistia seus seguidores encharcarem-se nas ondas, para buscá-la na escuridão.

Era assim que os minutos daquela noite se iam. Por fim, as altas horas marcavam o momento do passe. Sentia meus joelhos tiritarem enquanto me punha na fila indiana. Temia que algo também viesse me tocar, e me fazer rodopiar na areia úmida. Isso nunca aconteceu.

Dirigia-me para casa um tanto frustrada. Meus olhos inconformados vasculhavam o oceano buscando encontrar num momento sobrenatural, a bela Iemanjá a brilhar de pés descalços sobre as águas. Nunca a vi. Apenas as oferendas feitas a ela, bailando no vai e vem das ondas até o amanhecer.

Ainda hoje ao entrar no mar à noite, sinto que existe algo mais do que os seres marinhos e eu. O mesmo arrepio percorre o meu corpo, agora adulto. Não sei os cânticos adequados, mas do meu jeito agradeço, com uma saudade doída, pelos verões que embalaram minha infância. Quando fui tão feliz (e não sabia) morando em frente ao castelo da fascinante rainha Iemanjá.

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 02/02/2009
Reeditado em 02/02/2009
Código do texto: T1418554