Morreu Armando Morde na Mãe

Morreu Armando Morde na Mãe. Professor, engenheiro, tocador de pífaro e cítara, marido amantíssimo, pai devotado, amigo fiel, cidadão exemplar. Eis o modelo mais fidedigno de uma pessoa respeitável e valorosa.

Armando Morde na Mãe podia ter sido brindado com um nome peculiar mas se mordia em alguém não era na sua progenitora mas sim às canelas dos ímpios e dos fracos de espírito.

Armando não se resignava só em pregar o bem, exercendo-o de facto de viva fé. Todos os Domingos após a missa na paróquia do padre Juvenal, lá ia ele até ao asilo dos pobres ajudar a servir a sopa do dia aos desabrigados da sorte. De tarde, ao invés de desfrutar do repouso merecido após longa semana de trabalho, reunia em seu escritório jovens carenciados a quem oferecia explicações de aritmética.

E logo na segunda-feira pelas sete da manhã já a pé se encontrava, na leitaria do Sr. Fernando, um galego seu amigo, há muito estabelecido em terras lusas. Bebia o seu cafezinho com leite e comia uma singela sandes com manteiga. Era frugal nas preferências alimentares. Mantinha o corpo saudável para albergar uma mente fresca e esclarecida. Acreditava em Deus e na autoridade do estado. Respeitava as leis e a sua conduta era regida pela procura do bem-estar do próximo. A sua máxima de vida era:” faz o bem e não olhes a quem.”

Chegava à repartição pública às oito em ponto. Os colegas aproveitavam todos para acertar o relógio pela sua chegada. Organizava o serviço. Era o controlador da qualidade dos projectos. Na verdade não produzia nada. Mas zelava pelo cumprimento dos deveres dos seus comparsas. No intervalo para o almoço dirigia-se à tasca da Dona Acácia. Comia a sua sopinha e o seu arroz de grelos com pataniscas. Ou então o arroz de feijão com jaquinzinhos fritos. Não se desviava desta ementa. Mantinha assim os intestinos educados. Não bebia vinho. Apenas fazia acompanhar a refeição de um sumo de laranja e rematava com um carioca de limão. Tinha respeito pelas vitaminas. O que lhe evitava as gripes de Inverno. Da parte da tarde permanecia firmemente sentado à sua secretária até que o relógio de parede indicasse as cinco. Partia calmamente a pé até ao jardim do seu bairro e sentava-se num banco verde. Fixava-se nas crianças que brincavam nos balancés e sonhava com a sua infância infeliz. Os carinhos que não tivera. Os brinquedos que não lhe chegaram às mãos. As lágrimas vinham-lhe aos olhos.

Chegava a casa e beijava na testa a esposa. Era o único contacto físico diário que ainda mantinham. Depois retirava-se para o seu quarto, deitava-se sobre a colcha e lia. Gostava de ler a obra de São Tomás de Aquino. Deliciavam-no os seus argumentos a favor da existência de Deus. Sentia-se apaziguado e seguro na sua fé. Uma vida santa a que viveu. Sem sobressaltos nem aventuras. Morna, estável e desafogada.

Até ao aziago dia da sua precipitada morte. Tudo parecia decorrer em plena normalidade. No percurso para o trabalho passava calmamente numa costumeira esquina quando do céu lhe caiu em cima uma mulher de oitenta quilos. Morreram os dois esmagados contra o chão. Nunca em vida Morde na Mãe tinha tocado numa mulher para além da sua esposa. Pois a morte contrariaria assim a sua honra, recusando-lhe a derradeira dignidade merecida.

A mulher desnaturada, perdera a crença na salvação, suicidando-se. E com a sua desgraça arrastara para a eternidade o bastião da fé em Cristo. Dizem que os opostos se tocam. Nunca se tinha visto tão grande choque de realidades contrárias.

Armando Morde na Mãe morreu aos 60 anos de acidente de percurso. Descanse em paz no céu onde poucas almas habitam.

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 02/02/2009
Código do texto: T1418432
Classificação de conteúdo: seguro