O CLUBE DOS OPERÁRIOS
Contado por Jorge André, “O Seu Catalão” (1915-2007)
Escrito por Sandra Fayad
Em Catalão havia um clube social – o clube dos ricos, chamado Clube Recreativo e Atlético Catalano (CRAC), que era freqüentado apenas pelas pessoas mais abastadas da cidade, a chamada nata da sociedade.
Os operários não podiam entrar no clube. Faziam proposta para se associarem, mas estas não eram aceitas. A turma de operários, da qual eu era o mais velho, desejando freqüentar também o Clube, vinha a muito tempo tentando fazer com que a Diretoria aprovasse propostas de associação, e nada.
Como esta nem se manifestava, resolvi procurar o Prefeito João Neto de Campos:
- Prefeito, nós não temos um clube pra dançar... O CRAC não aceita nossa proposta de filiação. Então eu quero que o senhor dê um auxílio para abrirmos um clube.
- Onde vocês querem abrir esse clube?
- Será no prédio aí em frente a sua casa, que é do Cristiano Vitor, Farmacêutico,
- Então você vê lá quanto é o aluguel que eu ajudo vocês – respondeu ele.
Fui lá juntamente com os colegas João, Inácio e Sabino e falamos para o Zé Vitor, filho do Cristiano, que queríamos alugar o prédio pra fazer um clube.
- Pensando bem, eu alugo, com uma condição: vocês terão que fazer uma reforma no prédio, porque está muito mal “arrumado”.
Então eu disse:
- Combinado! Nós faremos a reforma. Um é pedreiro, outro é carpinteiro, outro é pintor, outro é encanador, outro é eletricista, outro toca sanfona, outro dirige orquestra, outro toca pandeiro. Quanto é o valor do aluguel?
- É cento e cinqüenta mil réis.
- Faz por cem? Não se preocupe! Vamos conseguir o dinheiro, porque o prefeito vai ajudar a pagar.
Ele fez. Fui à tipografia do João Pascoal e mandei fazer um boletim, explicando que a gente ia ter um clube. Distribuímos pela cidade de porta em porta.
Fizemos a reforma. Todos trabalharam - cada um dentro da sua profissão. Conseguimos material doado pelos comerciantes da cidade. Após a reforma, precisamos de objetos para as moças e rapazes se arrumarem, porque muitos nem possuíam roupas formais ou sapatos.
Para conseguir resolver o problema, fomos novamente de porta em porta nas casas de família e conseguimos muita coisa: espelhos, pentes, escovas, batons, ternos, vestidos, sapatos.
O Clube ficava no andar de cima do sobrado e lá havia dois quartinhos: o das moças e o dos rapazes.
Colocamos neles todas as doações e à medida que o pessoal chegava ia lá para se arrumar.
As moças passavam perfumes, batons, colocavam brincos, colares e ficavam bonitas para ir dançar no salão.
Resolvemos marcar um baile oficial de inauguração. Na orquestra cada um tocava seu instrumento. Foi uma festa arrojada que todos adoraram. Lá embaixo, Bastião Noronha, um soldado aposentado, aproveitou para abrir uma vendinha onde o pessoal ia beber dois dedos de pinga e comer alguma coisa, antes de subir para dançar.
Fizemos o segundo baile oficial. Desta vez, cobramos mil réis para cada um entrar. Apuramos um bom dinheiro. Deu para fazer uma mesa de pingue-pongue, melhoramos o quartinho das moças, colocando lá pó-de-arroz, espelhos, torneira com água para lavar o rosto, toalha e vaso sanitário. No quartinho dos rapazes apareceram também mais gravatas, camisas, pentes. Depois de usar as roupas sociais, os homens devolviam-nas no próprio Clube e as mulheres levavam para lavar e passar em casa, para serem usadas no próximo baile. Organizamos a secretaria, colocamos um porteiro e o número de sócios foi aumentando... O candidato preenchia a proposta e, se não fosse arruaceiro, a gente aprovava. Se fosse bagunceiro, a gente recusava. Só podia entrar quem tivesse a carteirinha de sócio.
Pedimos livros pela cidade e montamos uma Biblioteca. Colocamos tabuleiros de damas, jogos de baralho e dominó para as pessoas se divertirem. A cada dia o Clube melhorava mais. Nessas alturas eu já fora eleito Diretor de Festa e cuidava da organização.
Um dia, Banico e Olímpio, dois caboclos que eram bagunceiros e que tiveram suas propostas recusadas resolveram entrar no Clube “na marra”, quando estava havendo uma festa arrojada. O porteiro, claro, barrou os dois. Mas eles empurraram o homem para o lado e subiram as escadas.
Eu estava dançando com uma moça chamada Geralda. Quando passei no rumo da porta por onde estavam chegando os dois, eles me puxaram e disseram que queriam falar comigo. Vi que a confusão estava formada. Chamei o Inácio e falei:
- Dança aqui com essa moça pra mim que eu vou ali para resolver um probleminha.
Chamei-os para um lado e falei:
- O que vocês querem aqui? Vamos conversar lá embaixo.
- Não, disse um deles. Vamos conversar aqui mesmo.
- Aqui não! Vamos lá para baixo.
Descemos a escada. Agora vejam só! Um ia na minha frente e o outro atrás. No meio da escada, havia um degrau mais largo. Parei ali e perguntei novamente:
-O que vocês querem?
Não responderam. Pegaram-me pelo peito da camisa e foram que me puxando lá para baixo.
- Porque estão me segurando? perguntei.
Para não fazer escândalo e prejudicar o clube, eu disse:
- Calma, calma! Vamos lá para baixo. Não tenho medo de vocês não. Vamos descer devagar.
Lá embaixo estava cheio de gente à volta da entrada.
Na porta, eu gritei para o Bastião da vendinha:
- Ô Bastião Noronha, lá vou eu com estes dois agarrados em mim.
O Bastião, “arrancou” o 38 da cintura e gritou:
- Abre gente, abre!
E perguntou:
- Jorge, você precisa de ajuda?
Respondi:
- Não sei não, mas vamos ver o que eu arrumo aqui.
Então o Bastião tirou um “cacetete” e falou:
- Pega aí!
Eu disse:
- Não precisa não! Eu vou resolver isto aqui é no braço mesmo.
O Banico veio me dar um soco, eu me abaixei e meti um soco na cara dele. Caiu no meio da rua. Passei para frente do Olímpio que estava atrás de mim e dei outro soco nele. Ele caiu em cima do outro. Aí eles se levantaram e vieram de novo. E lhes meti um pontapé e outro soco e derrubei os dois novamente. Em um dos socos, meu dedo indicador afundou e a mão começou a doer. Fui cercado por todos que me davam parabéns e elogiavam minha atitude. Eu me senti meio confuso com tudo aquilo, minha camisa de seda rasgada e suja de sangue, minha mão inchando... acabei indo para casa.
Como já era madrugada, cheguei devagarzinho e me deitei. A mão doía, eu gemia baixinho, até que minha mãe acordou.
- Por que você está gemendo? Perguntou ela
- Meu dedo está destroncado.
Ela pegou um remédio para colocar e quis saber:
- O que aconteceu?
Contei com meias palavras para não deixá-la preocupada.
Ao amanhecer, bateram à porta. Minha mãe atendeu. O soldado disse:
- Houve uma briga lá no clube e ele tem que ir à Delegacia prestar depoimento.
Meu pai acordou bravo, nervoso, com a presença daquele soldado em casa.
O soldado explicou para eles que não era nada grave e que logo eu estaria de volta.
Ao descer a rua, passamos na porta de um médico, o Dr. Lamartine.
Eu pedi ao soldado:
- Vamos parar aqui porque minha mão está inchada e doendo demais...
O médico examinou e disse que precisava tirar uma chapa pra ver o que havia quebrado, mas em Catalão não havia esse recurso. Pedi que ele me aplicasse uma injeção pra tirar a dor e fomos para a Delegacia. Lá havia muita gente me esperando. Quando entrei, vi os dois rapazes: um com o olho todo inchado, preto mesmo...
O Prefeito que era padrinho do Banico também estava lá. Passei e fui direto para copa, onde minha prima trabalhava. Ela perguntou o que havia acontecido e eu contei.
O Major me chamou e pediu para relatar o caso desde o início. Falei sobre a invasão dos dois maus elementos, e que eles me acusaram de ter sido o responsável pela reprovação de suas filiações, expliquei que existia uma diretoria que aprovava ou não as propostas e que eles deveriam respeitar o regulamento.
Então o Major falou que eles teriam que pagar o tratamento de minha mão e os dias que eu ia ficar parado. E deu voz de prisão aos dois.
O prefeito entrou na conversa e disse:
- Eu mando tirar a chapa e pago os dias parados, se o senhor soltar os dois.
O Major-Delegado ficou vermelho e disse:
- Na Delegacia quem manda sou eu. Os dois vão ficar presos.
Eu, que devia favores ao Prefeito, pedi ao Major que soltasse os rapazes. Minha prima também pediu por eles. O Prefeito pediu novamente e, diante de tantos pedidos, o Major cedeu e os soltou. Ao saírem da cela, todos estavam muito emocionados e acabamos nos abraçando e chorando juntos. Foi uma comoção geral. Por incrível que pareça, deste dia em diante ficamos amigos. E quanto à minha mão, nunca consertou direito. Sarou, mas o dedo ficou meio endurecido para sempre. Marca registrada do murro.
Contado por Jorge André, “O Seu Catalão” (1915-2007)
Escrito por Sandra Fayad
Em Catalão havia um clube social – o clube dos ricos, chamado Clube Recreativo e Atlético Catalano (CRAC), que era freqüentado apenas pelas pessoas mais abastadas da cidade, a chamada nata da sociedade.
Os operários não podiam entrar no clube. Faziam proposta para se associarem, mas estas não eram aceitas. A turma de operários, da qual eu era o mais velho, desejando freqüentar também o Clube, vinha a muito tempo tentando fazer com que a Diretoria aprovasse propostas de associação, e nada.
Como esta nem se manifestava, resolvi procurar o Prefeito João Neto de Campos:
- Prefeito, nós não temos um clube pra dançar... O CRAC não aceita nossa proposta de filiação. Então eu quero que o senhor dê um auxílio para abrirmos um clube.
- Onde vocês querem abrir esse clube?
- Será no prédio aí em frente a sua casa, que é do Cristiano Vitor, Farmacêutico,
- Então você vê lá quanto é o aluguel que eu ajudo vocês – respondeu ele.
Fui lá juntamente com os colegas João, Inácio e Sabino e falamos para o Zé Vitor, filho do Cristiano, que queríamos alugar o prédio pra fazer um clube.
- Pensando bem, eu alugo, com uma condição: vocês terão que fazer uma reforma no prédio, porque está muito mal “arrumado”.
Então eu disse:
- Combinado! Nós faremos a reforma. Um é pedreiro, outro é carpinteiro, outro é pintor, outro é encanador, outro é eletricista, outro toca sanfona, outro dirige orquestra, outro toca pandeiro. Quanto é o valor do aluguel?
- É cento e cinqüenta mil réis.
- Faz por cem? Não se preocupe! Vamos conseguir o dinheiro, porque o prefeito vai ajudar a pagar.
Ele fez. Fui à tipografia do João Pascoal e mandei fazer um boletim, explicando que a gente ia ter um clube. Distribuímos pela cidade de porta em porta.
Fizemos a reforma. Todos trabalharam - cada um dentro da sua profissão. Conseguimos material doado pelos comerciantes da cidade. Após a reforma, precisamos de objetos para as moças e rapazes se arrumarem, porque muitos nem possuíam roupas formais ou sapatos.
Para conseguir resolver o problema, fomos novamente de porta em porta nas casas de família e conseguimos muita coisa: espelhos, pentes, escovas, batons, ternos, vestidos, sapatos.
O Clube ficava no andar de cima do sobrado e lá havia dois quartinhos: o das moças e o dos rapazes.
Colocamos neles todas as doações e à medida que o pessoal chegava ia lá para se arrumar.
As moças passavam perfumes, batons, colocavam brincos, colares e ficavam bonitas para ir dançar no salão.
Resolvemos marcar um baile oficial de inauguração. Na orquestra cada um tocava seu instrumento. Foi uma festa arrojada que todos adoraram. Lá embaixo, Bastião Noronha, um soldado aposentado, aproveitou para abrir uma vendinha onde o pessoal ia beber dois dedos de pinga e comer alguma coisa, antes de subir para dançar.
Fizemos o segundo baile oficial. Desta vez, cobramos mil réis para cada um entrar. Apuramos um bom dinheiro. Deu para fazer uma mesa de pingue-pongue, melhoramos o quartinho das moças, colocando lá pó-de-arroz, espelhos, torneira com água para lavar o rosto, toalha e vaso sanitário. No quartinho dos rapazes apareceram também mais gravatas, camisas, pentes. Depois de usar as roupas sociais, os homens devolviam-nas no próprio Clube e as mulheres levavam para lavar e passar em casa, para serem usadas no próximo baile. Organizamos a secretaria, colocamos um porteiro e o número de sócios foi aumentando... O candidato preenchia a proposta e, se não fosse arruaceiro, a gente aprovava. Se fosse bagunceiro, a gente recusava. Só podia entrar quem tivesse a carteirinha de sócio.
Pedimos livros pela cidade e montamos uma Biblioteca. Colocamos tabuleiros de damas, jogos de baralho e dominó para as pessoas se divertirem. A cada dia o Clube melhorava mais. Nessas alturas eu já fora eleito Diretor de Festa e cuidava da organização.
Um dia, Banico e Olímpio, dois caboclos que eram bagunceiros e que tiveram suas propostas recusadas resolveram entrar no Clube “na marra”, quando estava havendo uma festa arrojada. O porteiro, claro, barrou os dois. Mas eles empurraram o homem para o lado e subiram as escadas.
Eu estava dançando com uma moça chamada Geralda. Quando passei no rumo da porta por onde estavam chegando os dois, eles me puxaram e disseram que queriam falar comigo. Vi que a confusão estava formada. Chamei o Inácio e falei:
- Dança aqui com essa moça pra mim que eu vou ali para resolver um probleminha.
Chamei-os para um lado e falei:
- O que vocês querem aqui? Vamos conversar lá embaixo.
- Não, disse um deles. Vamos conversar aqui mesmo.
- Aqui não! Vamos lá para baixo.
Descemos a escada. Agora vejam só! Um ia na minha frente e o outro atrás. No meio da escada, havia um degrau mais largo. Parei ali e perguntei novamente:
-O que vocês querem?
Não responderam. Pegaram-me pelo peito da camisa e foram que me puxando lá para baixo.
- Porque estão me segurando? perguntei.
Para não fazer escândalo e prejudicar o clube, eu disse:
- Calma, calma! Vamos lá para baixo. Não tenho medo de vocês não. Vamos descer devagar.
Lá embaixo estava cheio de gente à volta da entrada.
Na porta, eu gritei para o Bastião da vendinha:
- Ô Bastião Noronha, lá vou eu com estes dois agarrados em mim.
O Bastião, “arrancou” o 38 da cintura e gritou:
- Abre gente, abre!
E perguntou:
- Jorge, você precisa de ajuda?
Respondi:
- Não sei não, mas vamos ver o que eu arrumo aqui.
Então o Bastião tirou um “cacetete” e falou:
- Pega aí!
Eu disse:
- Não precisa não! Eu vou resolver isto aqui é no braço mesmo.
O Banico veio me dar um soco, eu me abaixei e meti um soco na cara dele. Caiu no meio da rua. Passei para frente do Olímpio que estava atrás de mim e dei outro soco nele. Ele caiu em cima do outro. Aí eles se levantaram e vieram de novo. E lhes meti um pontapé e outro soco e derrubei os dois novamente. Em um dos socos, meu dedo indicador afundou e a mão começou a doer. Fui cercado por todos que me davam parabéns e elogiavam minha atitude. Eu me senti meio confuso com tudo aquilo, minha camisa de seda rasgada e suja de sangue, minha mão inchando... acabei indo para casa.
Como já era madrugada, cheguei devagarzinho e me deitei. A mão doía, eu gemia baixinho, até que minha mãe acordou.
- Por que você está gemendo? Perguntou ela
- Meu dedo está destroncado.
Ela pegou um remédio para colocar e quis saber:
- O que aconteceu?
Contei com meias palavras para não deixá-la preocupada.
Ao amanhecer, bateram à porta. Minha mãe atendeu. O soldado disse:
- Houve uma briga lá no clube e ele tem que ir à Delegacia prestar depoimento.
Meu pai acordou bravo, nervoso, com a presença daquele soldado em casa.
O soldado explicou para eles que não era nada grave e que logo eu estaria de volta.
Ao descer a rua, passamos na porta de um médico, o Dr. Lamartine.
Eu pedi ao soldado:
- Vamos parar aqui porque minha mão está inchada e doendo demais...
O médico examinou e disse que precisava tirar uma chapa pra ver o que havia quebrado, mas em Catalão não havia esse recurso. Pedi que ele me aplicasse uma injeção pra tirar a dor e fomos para a Delegacia. Lá havia muita gente me esperando. Quando entrei, vi os dois rapazes: um com o olho todo inchado, preto mesmo...
O Prefeito que era padrinho do Banico também estava lá. Passei e fui direto para copa, onde minha prima trabalhava. Ela perguntou o que havia acontecido e eu contei.
O Major me chamou e pediu para relatar o caso desde o início. Falei sobre a invasão dos dois maus elementos, e que eles me acusaram de ter sido o responsável pela reprovação de suas filiações, expliquei que existia uma diretoria que aprovava ou não as propostas e que eles deveriam respeitar o regulamento.
Então o Major falou que eles teriam que pagar o tratamento de minha mão e os dias que eu ia ficar parado. E deu voz de prisão aos dois.
O prefeito entrou na conversa e disse:
- Eu mando tirar a chapa e pago os dias parados, se o senhor soltar os dois.
O Major-Delegado ficou vermelho e disse:
- Na Delegacia quem manda sou eu. Os dois vão ficar presos.
Eu, que devia favores ao Prefeito, pedi ao Major que soltasse os rapazes. Minha prima também pediu por eles. O Prefeito pediu novamente e, diante de tantos pedidos, o Major cedeu e os soltou. Ao saírem da cela, todos estavam muito emocionados e acabamos nos abraçando e chorando juntos. Foi uma comoção geral. Por incrível que pareça, deste dia em diante ficamos amigos. E quanto à minha mão, nunca consertou direito. Sarou, mas o dedo ficou meio endurecido para sempre. Marca registrada do murro.