O mundo não é nosso?
Numa cena do filme “O dia em que a Terra parou”, refilmagem de clássico de 1951, o clone humano com “alma” de alien dá uma dura na representante do governo dos EUA, ao ser perguntado sobre o que teria vindo fazer em “nosso planeta”. “Seu planeta?”, reage com indignação o alienígena clonado.
Há algo destoante na fertilidade de um planeta isolado, tão longe de planetas da mesma espécie como se outros nem existissem. Como se o homo sapiens não fosse como os outros seres, e não pudéssemos partilhar da engrenagem fértil que nos inclui sem um grande pasmo, antes de qualquer fascínio.
Saint-Exupéry escreveu: “Em um mundo em que a vida se une tanto à vida, em que as flores amam as flores no próprio leito dos ventos, em que o cisne conhece todos os cisnes, só os homens constroem a sua solidão.”
A singularidade da Terra eleva a “sensação térmica” do ser que dirige o olhar para fora da ilha planetária, da atmosfera de vida, e não vê nada ou ninguém no ponto mais remoto acenando com um possível resgate. E a solidão humana se crê, assim, universal.
Para não pensar no assunto, ou se consolar pelo silêncio, o macaco falante inventou a posse da ilhota terrestre. Virou o “rei da selva”, o “filho de Deus”, assumiu o controle do conhecimento e almeja a regência da natureza. Fez do privilégio da visão consciente o motivo bastante para se considerar “dono do mundo”. Fez da solidão implacável uma desculpa para agir como se estivesse, de fato, sozinho, no controle de um barco vazio à deriva no cosmo desértico.
A noção matemática de posse abarca as noções de inclusão e domínio, expressa na teoria dos conjuntos pela idéia de grupos maiores contendo grupos menores ou elementos individuais. Segundo tal fórmula, diríamos que a Terra é um elemento do homem? Ou que o homem é um elemento da Terra? O que parece sensato? Matematicamente, portanto, soa absurdo dizer “o nosso planeta” no sentido de referência a um objeto de posse humana.
Por outro lado, no reino natural – no conjunto maior da biosfera – que pensamos tutelar, a posse não é realidade incomum. A biologia é cheia de exemplos, e atinge os mamíferos autoproclamados “superiores”. A mãe carrega o filhote tem por certo que o filho é “seu”, pela relação simbiótica estabelecida, pelo menos até que a necessidade exija. A lógica persiste no habitat que possibilita a proliferação de gerações de uma mesma espécie. A Terra tinha os dinossauros, os dinossauros não tinham a Terra.
A relação da humanidade com o planeta que nos carrega é especial, do prisma de nossa aparente potência de modificação da realidade terrestre. Mas não somos os proprietários deste pequeno ponto celeste, e muito menos da vida que emerge, fenece e ressurge no intervalo entre eras glaciais. O que fazer com a não-posse? O que fazer com a desconcertante liberdade do homem animal?
A percepção de que o mundo não é nosso pode gerar uma revolta inútil contra fatos inexoráveis, e apenas acelerar a extinção humana. Ou pode trazer um pouco de humildade à celebração de nossa virtual solidão – e aí, recordemos outras palavras do mesmo Antoine de Saint-Exupéry: “Que misteriosa ascensão! De uma lava em fusão, de uma lama de astro, de uma célula viva germinada por milagre, nós saímos e pouco a pouco nos elevamos até escrever poemas e pesar as vias-lácteas.”
Até onde vamos nessa ascensão, até onde vinga a nossa germinação, qual a extensão do milagre humano ou a duração da linha que nos trouxe do acaso – são questões que escapam do nosso campo de visão. Mas esse alcance depende, possivelmente, de nossa capacidade de superar a vontade de poder provinda de um notório complexo de inferioridade que acompanha toda solidão.
*Jornalista e mestre em Filosofia.
fabiolucas@uol.com.br
www.cameracronica.blogspot.com