As mentiras que contamos a nós mesmos
Há algum tempo atrás (como de costume) saí com uma amiga, com o propósito de esvaziarmos os corações. Escolhemos um bar. Sentamo-nos junto à janela, de onde podíamos ver a vida alheia passando velozmente dentro dos carros, e o músico, que apoiado num baquinho de madeira tirava belos acordes do violão entoando com voz melódica e afinada: “Às vezes no silêncio da noite...”
Estava prestes a emendar um coro com minha voz desafinada (mas com coração sensível de escritora), quando minha amiga soltou um grunhido abafado. Olhei para ela e, com espanto, vi o seu rosto encharcado por lágrimas escuras que tinham acabado de despencar do par de olhos decorados por rímel e delineador.
Entreguei-lhe um guardanapo para que limpasse o borrão escuro que começava a desfigura-lhe o rosto. E falei: “Calma! Respira fundo e me conta tudo. Estou aqui para te ouvir.” Durante mais ou menos uma hora, minha amiga de infância, abriu-me o diário dos últimos quinze dias (era o tempo que estávamos sem nos ver), nos quais o namorado, de anos, como um desprezível cafajeste a fez sofrer imensamente, até finalmente confessar que a via apenas como uma grande e boa amiga.
Minha cabeça fervia, meu coração soqueava o peito e eu precisava me controlar para não gritar: “Manda este (piiiiii) para a (piiiiii)”! Porém a deixei falar por intermináveis minutos até que ela se acalmou e disse: “Não sei que houve, estava tudo tão bem...”.
Estas são as mentiras que contamos a nós mesmos, que o nosso ego adora inventar para se satisfazer. Então além de cegos ficamos surdos e mudos para não sofrer. Não nos dando conta de que, fingindo não nos permitimos ser realmente felizes. São as armadilhas que preparamos para nós, tão visíveis para quem está do lado de fora. “Ele não pode viajar comigo porque está cheio de trabalho”. “Ele precisa ir sozinho porque a mãe ainda não me aceita”. “Os filhos morrem de ciúme de nós, por isso só nos vemos nos dias de semana”. “Ele me ama, só não sabe expressar”. Só para citar algumas no campo sentimental.
Estava tudo tão bem uma ova! Há muito o namorado da minha amiga vinha aprontando sutilmente e ela descobrindo sutilmente. A coisa já estava péssima. Só que ela não queria admitir, ver, enxergar, dar um ponto final. Por medo de sofrer fingia que estava tudo bem, sem admitir o quanto já estava sofrendo.
Voltando à noite em que saímos para beber as mágoas... Àquela altura as mesas chacoalhavam ao som de “Viver e não ter a vergonha de ser feliz...”, então olhei diretamente para aqueles olhos borrados de sofrimento e escancarei: “Estava tudo tão bem coisa nenhuma! Este cara está te fazendo de boba já faz tempo. Tu és bonita, inteligente e habilidosa o suficiente para aprender a fazer canja de tipinhos como este.” Imagino como deve ter sido difícil ouvir isto. Imagino como causei dor e raiva a minha amiga, mas não me arrependo, por um segundo sequer, de ter pintado o quadro real que ela teimava em fingir que não via.
Ela encontra-se sozinha agora, tentando unir os pedaços do que quebrou no passado. Numa noite destas, sentamos ao ar livre para, mais uma vez, tricotarmos com o fio que envolve nossos corações. A música corria solta com a brisa fresca, comum às noites de verão. Durante uma pausa na conversa para olhar em volta, minha amiga deixou-se envolver pela canção e resolveu acompanhar o músico numa afinação melhor do que a minha e o coração sensível dos sobreviventes: “Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido, ter me rebelado ter me debatido, ter me machucado, ter sobrevivido...”.