SAUDADES DE MIM
Acordei com o sabor do pão da antiga padaria, com o cheiro de café no coador de pano, com a cantiga das ondas no mar de infância... Busquei um rosto a ser colorido no espelho, mas o retrato já estava pronto.
Despertei de um sono profundo. Engatinhei nas primeiras recordações: escondi-me na festa de cinco anos, roubei alguns brigadeiros, ganhei uma boneca de pano, pintei o sete adolescente, ensaiei a rebeldia em alguns personagens, senti a expectativa do vestibular, incorporei o orgulho do primeiro emprego, deixei o ventre crescer na possibilidade de ser o outro...
As inseguranças fincam raízes e já não as percebo sob o chão dos trajetos rotineiros. Cresço em alguns ousados galhos, desfolho-me e renasço.
Passeei nos anos e tentei conter o coração disparado atrás da porta, reviver as paixões da jovem e as descobertas da mulher desnuda. Encontros e desencontros. Senti falta de me prender na lentidão das horas, de me libertar na brevidade de um momento...
Caminhei pela casa e não me reconheci nas sombras. A presença era nostálgica. Era menina, jovem, apaixonada... Mas também era o choro do primeiro desencanto, medo e raiva. O corpo ensaiou uma dança antiga, rodopiou nas horas, descansou na constância do tempo, no primeiro beijo, no último olhar...
Distante dos noticiários cotidianos, abro o antigo livro de histórias e descubro as guerras: a primeira, a segunda... Nas entrelinhas dos capítulos, interpreto a guerra fria. Ergo muros e viajo nas ideologias. Não entendo exatamente o que é ser igual... Não entendo o porquê de tantas diferenças...
As explosões despertam a realidade. São tantos os mortos e ainda não compreendo os motivos. Os ódios são exacerbados, os amores virtuais... Tudo parece ficção, enredos de espetáculos de humilhações e torturas, de vitórias e heroísmos. Terroristas e soldados estão entrincheirados em armadilhas fatais. Homens desfazem dos homens... Onde estarão o soldadinho de chumbo e a bailarina?
Mas a rotina corre no curso e deságua nas tantas obrigações cotidianas. O despertador toca no anúncio de mais um dia de trabalho. A pequena sombra saltitante foge do meu alcance, brinca de esconder nos cantos da memória.
Fecho os olhos. Sinto falta da percepção infantil, da leveza de estar protegida pelo não-entendimento, pela dispersão... Um céu de pipas coloridas, o bem e o mal brincando nos contos de fadas, um piquenique marcado de formigas e farelos, a travessura dos meninos... Careço do entusiasmo do amanhecer, do encantamento dos sonhos adormecidos...
Coração disparado... Atrás da porta, tento reviver os passos sonolentos dos primeiros anos, o alvorecer da infância, o calor da adolescência... Junto as folhas secas das vivências inaugurais e faço uma fogueira para aquecer e iluminar os dias presentes.
Com as sensações distantes, acordo com vontade de voltar no tempo, de passear nas horas, estar presente nos cheiros, sabores e músicas. Restam ausências de lembranças numa sombra desconhecida.
Sinto saudades de mim...