A MORTE DE ROMEU
Um breve canto... De repente, o corpo se contrai como se envolvido por uma dança inaugural, a cabeça tomba sobre o peito, embalada pelo último suspiro, e levemente a existência pousa no chão.
“Ele deitou. Olha mãe! O Romeu está me deixando acaricia-lo...”
Olhei Barbarella debruçada sobre a gaiola e fui dominada por um intenso calafrio. A morte ilustrada no periquito dourado era o primeiro parágrafo de um novo capítulo na vida de minha menininha de sete anos. Como justificar o corpo sem vida de Romeu, o silêncio de Julieta...?
Coloquei a pequena no colo e comecei a falar sobre o céu e as estrelas. Tentei encontrar a metáfora perfeita para descrever o presente, mas me perdia em divagações. Não estava preparada para este enredo... Barbarella me olhou com estranhamento e perguntou diretamente se Romeu estava morto. Sem palavras, limitei-me a um gesto afirmativo.
Ela riu nervosamente, seus olhos estavam presos ao corpo do pequeno pássaro e suas emoções se debatiam nos cantos da sala como se aprisionadas numa gaiola. Por instantes, senti que suas palavras pousaram num horizonte distante, busquei escreve-las, porém alçaram vôos inatingíveis...
Peguei o frágil corpo de Romeu sob o olhar atento de Barbarella. Queria descobrir o motivo para a morte do filhote enquanto ela insistia na possibilidade de reaviva-lo. Procurei nos convencer da naturalidade da morte e da aceitação do que não podemos mudar...
Ainda fomos surpreendidas quando os olhos do Romeu se abriram... Será? Alguma esperança nos alcançou por instantes, mas era apenas uma contração muscular que traduzia o tardio olhar para a realidade.
Barbarella sentou em frente da gaiola, conversou com a periquita Julieta e libertou algumas lágrimas. Foi forte para consolar a sobrevivente... Foi frágil ao compreender a fatalidade a que todos nós estamos condenados...
“Julieta, o Romeu morreu, mas você está viva. Pode contar comigo...”
Atordoada, com o corpo do periquito nas mãos, com as lágrimas de Barbarella escorrendo na alma e com a posição ereta e solitária de Julieta no poleiro, fui dominada pela dor. Coloquei Romeu numa caixa de sapatos e fiquei observando minha filha elaborar a morte no silêncio de Julieta.
De repente, o canto se encerra num breve vôo...
À noite, depois de uma intensa despedida, saímos em busca de um canteiro para enterrar o pequeno pássaro em uma rua deserta. Barbarella falou algumas palavras, homenageou o amigo e “marido” de Julieta, encerrou com a percepção da descontinuidade...
“Pena que não tiveram filhos...”
Voltamos sem muitas palavras, deixamos o silêncio desenhar no escuro a ausência de Romeu. Em casa, Julieta permanecia ereta no poleiro, com a cabeça inclinada para o lado vazio. Deixou-se preencher pela saudade, era indiferente à nossa presença, perdera a referência da própria existência...
“Manhê! Será que a Julieta vai morrer como naquela história?”
Barbarella ainda ensaiou alguns vôos, mas finalmente adormeceu...
Perdi o sono nas sombras de presença do Romeu. Lembrei do dia em que compramos os periquitos, da alegria de Barbarella, do batismo do casal, das latas penduradas na gaiola no dia do casamento, da expectativa pelos ovos, das estripulias do filhote pendurado de cabeça para baixo brincando de pássaro-morcego, dos cantos impróprios de madrugada... Enfim, lembrei das tantas percepções refletidas, vivenciadas pelo jovem casal... Compreendi a libertação do amor trágico de Shakespeare na realização do afeto cotidiano sob as alegorias infantis...
Os pássaros não morrem em vôos livres.
Senti a enorme solidão de retalhar lembranças numa colcha pretérita. Olhei para a gaiola na penumbra, Julieta estava na mesma posição empoleirada, com a cabeça inclinada para a ausência do companheiro... Pensei em liberta-la, deixa-la procurar um bando, disfarçar a dor no horizonte distante do destino trágico de ser apunhalada pela irremediável saudade, mas percebi que seria sentencia-la ao fim junto do primeiro galho...
Quando nascemos em cativeiros estamos fadados à vida em gaiolas...