Uma casa nem sempre é um lar
Eu não gostei de morar naquela casa. Era tudo tão provisório que mal a deixamos para trás eu já havia me esquecido dela. Vivi ali por um ano e foi como se esse ano não tivesse existido. Foi como se eu não tivesse existido. Hoje passo por ela e tento adivinhar como era lá dentro porque não sei mais. Tendo adivinhar também como era dentro de mim. A casa me oprimia. Entre as poucas lembranças recordo-me que ao me deitar para dormir afastava bem a cama da parede: tinha um medo irracional de que, se encostasse minha cabeça nela, seria engolida pelos tijolos. Emparedada. Os vizinhos continuam ali. Eram meus amigos, antes que eu me mudasse para lá, continuam meus amigos hoje. Mas quando isso aconteceu, me tornei reclusa. Não me lembro de ter convivido com eles. Mas a culpa não foi deles. Nem da casa. Eu devia tê-la amado, porque me acolheu sem restrições. Mas não. Eu a desprezei. Não consegui fazer dela um lar.
Foi no meio da noite que tudo aconteceu. Um barulho estranho, forte. Um barulho desconhecido. Lembro-me de meu pai me chamando para ver. Não chamou minha mãe, nenhum de meus irmãos. A casa em que morávamos, a casa que eu amava, cedeu. Afundou. Abriu-se uma brecha na parte dos fundos por onde podia se atravessar um braço. Ficamos os dois a noite toda acordados, ele no seu canto, eu no meu, esperando o dia amanhecer, atentos a qualquer ruído estranho, por mais suave que fosse. Quando o dia seguinte chegou, pânico total. Tivemos que sair correndo, acampamos todos na casa de minha irmã, casada há pouco tempo. Colchões de campanha foram estendidos na sala, éramos muitos. Ali ficamos até encontrar uma casa para alugar. E encontramos e fomos para lá. Sem meu pai. Ele não quis sair da casa que era dele, e lá ficou comandando a reconstrução. Mas nos levou para um lugar seguro. Assim pensava ele. Quanto a mim nunca me senti tão desprotegida nessa vida quanto no ano que passei naquela casa.
Logo depois que voltamos para a nossa casa, em cima da Fábrica de Pães, eu fui, acompanhando uma prima, visitar uma vidente. Era uma mulher famosa, amiga de políticos e empresários, que nada faziam sem consultá-la. Ela tinha um método de contar suas visões. Ia falando e pedia que escrevessemos o que ela falava em uma folha de papel. O seu telefone tocava sem parar e ela atendia sempre fazendo questão de dizer o nome de quem estava do outro lado da linha. Só gente famosa. Mulher imbecil, eu pensava. Quando se dignou a me dar atenção ela disse: você acaba de mudar de casa. Não, eu disse, a senhora está enganada. Ela continuou afirmando: Mudou sim, é um sobrado, embaixo tem um estabelecimento comercial. Bem, eu disse, essa é a minha casa, mas eu moro lá há anos, eu não me mudei para lá agora. Mas ela insistia. Eu negava. Bem, o caso que ela desanimou porque eu teimei até o fim. Ela preferiu passar para outros assuntos e eu saí de lá decepcionada. Quando cheguei em casa ao me perguntarem o que ela tinha me dito, contei: vidente fajuta, disse que eu acabo de me mudar de casa. Alguém perguntou: e não acaba? Foi só aí que eu me dei conta de que ela estava certa e eu errada.
Não consegui entender o que aconteceu comigo durante esse ano. Na ocasião, nem tentei. Preferi esquecer. Mas hoje consigo compreender um pouco. Um pouquinho só. Foi um sentimento de negação tão grande que a memória enterrou bem no fundo tudo o que se referiu aquele período. Foi como se eu tivesse passado um ano dormindo e só tivesse acordado quando voltei para aquela que foi a casa que mais amei. Meu lar.
Eu não gostei de morar naquela casa. Era tudo tão provisório que mal a deixamos para trás eu já havia me esquecido dela. Vivi ali por um ano e foi como se esse ano não tivesse existido. Foi como se eu não tivesse existido. Hoje passo por ela e tento adivinhar como era lá dentro porque não sei mais. Tendo adivinhar também como era dentro de mim. A casa me oprimia. Entre as poucas lembranças recordo-me que ao me deitar para dormir afastava bem a cama da parede: tinha um medo irracional de que, se encostasse minha cabeça nela, seria engolida pelos tijolos. Emparedada. Os vizinhos continuam ali. Eram meus amigos, antes que eu me mudasse para lá, continuam meus amigos hoje. Mas quando isso aconteceu, me tornei reclusa. Não me lembro de ter convivido com eles. Mas a culpa não foi deles. Nem da casa. Eu devia tê-la amado, porque me acolheu sem restrições. Mas não. Eu a desprezei. Não consegui fazer dela um lar.
Foi no meio da noite que tudo aconteceu. Um barulho estranho, forte. Um barulho desconhecido. Lembro-me de meu pai me chamando para ver. Não chamou minha mãe, nenhum de meus irmãos. A casa em que morávamos, a casa que eu amava, cedeu. Afundou. Abriu-se uma brecha na parte dos fundos por onde podia se atravessar um braço. Ficamos os dois a noite toda acordados, ele no seu canto, eu no meu, esperando o dia amanhecer, atentos a qualquer ruído estranho, por mais suave que fosse. Quando o dia seguinte chegou, pânico total. Tivemos que sair correndo, acampamos todos na casa de minha irmã, casada há pouco tempo. Colchões de campanha foram estendidos na sala, éramos muitos. Ali ficamos até encontrar uma casa para alugar. E encontramos e fomos para lá. Sem meu pai. Ele não quis sair da casa que era dele, e lá ficou comandando a reconstrução. Mas nos levou para um lugar seguro. Assim pensava ele. Quanto a mim nunca me senti tão desprotegida nessa vida quanto no ano que passei naquela casa.
Logo depois que voltamos para a nossa casa, em cima da Fábrica de Pães, eu fui, acompanhando uma prima, visitar uma vidente. Era uma mulher famosa, amiga de políticos e empresários, que nada faziam sem consultá-la. Ela tinha um método de contar suas visões. Ia falando e pedia que escrevessemos o que ela falava em uma folha de papel. O seu telefone tocava sem parar e ela atendia sempre fazendo questão de dizer o nome de quem estava do outro lado da linha. Só gente famosa. Mulher imbecil, eu pensava. Quando se dignou a me dar atenção ela disse: você acaba de mudar de casa. Não, eu disse, a senhora está enganada. Ela continuou afirmando: Mudou sim, é um sobrado, embaixo tem um estabelecimento comercial. Bem, eu disse, essa é a minha casa, mas eu moro lá há anos, eu não me mudei para lá agora. Mas ela insistia. Eu negava. Bem, o caso que ela desanimou porque eu teimei até o fim. Ela preferiu passar para outros assuntos e eu saí de lá decepcionada. Quando cheguei em casa ao me perguntarem o que ela tinha me dito, contei: vidente fajuta, disse que eu acabo de me mudar de casa. Alguém perguntou: e não acaba? Foi só aí que eu me dei conta de que ela estava certa e eu errada.
Não consegui entender o que aconteceu comigo durante esse ano. Na ocasião, nem tentei. Preferi esquecer. Mas hoje consigo compreender um pouco. Um pouquinho só. Foi um sentimento de negação tão grande que a memória enterrou bem no fundo tudo o que se referiu aquele período. Foi como se eu tivesse passado um ano dormindo e só tivesse acordado quando voltei para aquela que foi a casa que mais amei. Meu lar.