Burgueses de todo o mundo, uni-vos!

Ontem, a fina flor da burguesia brasiliense comemorou, em noite de gala, os seus quinze anos de idade.

É necessário dizer, aos que não compareceram à festa, que a harmonia do espetáculo infundiu em todos os presentes uma profunda consternação e que cada coisa se encontrava delicadamente no seu devido lugar: os convidados, o Buffet, os docinhos, o enorme bolo com cobertura de baunilha, o singelo vestido da aniversariante, sua maquiagem, seus sapatinhos de cristal, a valsinha, tudo transcorreu na mais perfeita harmonia. Ouso dizer ainda, que nem mesmo os poetas mais românticos do século XIX conceberiam mundo tão idealizado!

Aliás, não fosse eu ter pisado desastrosamente no pé da aniversariante, as coisas seriam mais perfeitas ainda. Renderia bons capítulos num romance de Coelho Neto. Digamos que minha presença, nesse momento, tenha corrompido um pouco a harmonia daquela valsa.

E é aproveitando o cargo a mim confiado, que tomo três medidas urgentes: primeiro, pedir desculpas à Família da moça pelo inesperado, juro que não era minha intenção! Segundo, parabenizar os organizadores da festa pelos bons serviços prestados. E, por último, atender ao caloroso pedido de Mm. Katarinne e outras queridas senhoras simpatizantes da minha crônica, e dá notícias do que se passou em tão maravilhoso evento.

As razões que me trouxeram à festa, e como consegui entrar, são detalhes desprezíveis, que só serviriam para tornar fastidiosa a narração dessa crônica que se pretende ligeira. Dadas essas razões, peço encarecidamente às senhoras, que contenham vossa curiosidade na superfície dos fatos!

Sim, cantemos a superfície dos fatos! A superficialidade sem espírito de nossos sonhos burgueses!

A festa foi tão deslumbrante - minhas senhoras! - que no auge de nossa euforia sequer nos lembramos que fazemos parte de um país de Terceiro Mundo! Certamente, naquele momento, pairávamos todos numa outra atmosfera, num outro plano onde a beleza burguesa poderia ser apreciada sem ressentimentos ou qualquer sentimento de culpa cristã.

Tamanha era a fartura dos doces, tira-gostos e bebidas dispostas sobre a mesa, que sequer sonháramos haver fome nesse mundo! Os problemas da América Latina, os problemas de moradia nas cidades suburbanas, a mendicância na Rodoviária, eram assuntos que passavam longe das bocas embebidas de vinho. Entre as damas, discutiam-se os assuntos mais interessantes: amenidades como o novo corte de cabelo da madrinha da aniversariante, o vestido indiscreto da sua irmã mais caçula, o namorado daquela outra. Entre os cavalheiros, as conversas se alternavam entre mulheres e os novos veículos recém-importados no país, “Uma maravilha de carro!”. E entre uma conversa e outra, os olhos e os ouvidos voltavam-se todos para as belezas que desfilavam no salão, a doce melodia daquela valsa! A elegância daquele vestido! A compostura daquele cavalheiro! O patrimônio da família! A luminosidade daquele lustre!

Mal sabíamos em nosso deslumbramento que a menos de vinte e cinco quilômetros do Lago Sul, milhões de famílias suburbanas viviam abaixo da linha da pobreza! Qualquer cidade suburbana do Distrito Federal estava mais longe do que de costume. Sim Senhoras! Aquela casa no Lago Sul era uma ilha cercada por uma névoa de deslumbramento e de inocência!

Enquanto festejávamos os quinze anos daquela princesa burguesa, entre gracejos e petiscos agradáveis, os subúrbios exaustos dormiam ao longe, muito longe dali...

Aliás, há muito que os subúrbios não dormem. Dormir é luxo! Uma parte do subúrbio se converte em pedra, tamanha é a exaustão provocada pelo trabalho cotidiano. A outra metade nem isso: fica numa inquieta vigília até que venha o dia iluminar sua vida de miséria.

Ah, minhas Senhoras, não quero aborrecê-las com essa história de pobreza! Não, isso não são coisas de meu caráter. Sinto que o bafo detestável das massas populares enche-lhes de repúdio! Sei como evitam os ônibus, sei como detestam parar nos semáforos, e como viram o rosto quando aquelas crianças estendem caixas cheias de chiclete e de guloseimas tabelas a um real! Não, não pretendo aborrecê-las com tais evocações...

A partir de hoje, ser-lhe-eis fino e cordial como um garçom de Restaurant Palace, serei delicado como um gato siamês, e tão polido quanto um fidalgo francês do século, talvez, XVIII!

Portanto - minhas queridas senhoras - esqueçamos a miséria! E Cantemos a superficialidade sem espírito de nossos sonhos burgueses! Cantemos, cantemos em coro! Antes que a burguesia seja classe morta em livros de História! Antes que a Classe Operária tome consciência de sua exploração! Antes que os Comunistas destruam a Propriedade Privada! Antes que o povo implante a Ditadura do Proletariado! Cantemos a superficialidade de nossos sonhos burgueses! Cantemos, cantemos o mais alto que podemos, até que se abafe qualquer resquício de miséria, até que se abafem todos os soluços da criança faminta!

- Burgueses de todo o mundo, cantemos!

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 28/01/2009
Reeditado em 15/06/2009
Código do texto: T1408294