Ainda hoje eu os vejo como se estivessem vivos.
Acontece muitas vezes, durante o dia ou durante a noite. Da última vez foi na semana passada, eu acabava de dobrar a esquina em direção a minha casa: estava entrando no portão, a bolsa que eu lhe dei debaixo do braço e por um átimo de segundo tive a certeza de que era ele e meu coração se acelerou contente querendo se enganar. Mas não, o portão era o da casa vizinha e quem entrou foi apenas alguém querendo alugar a casa recém reformada. Assim que percebi diminui a velocidade dos passos porque meus olhos estavam cheios de água e eu não queria responder perguntas.
Eu o vejo mais do que aos outros porque afinal foi o último a partir e sua imagem ainda está muito viva em minhas retinas. Mas é uma tolice minha ter esta esperança de que posso encontrá-lo em qualquer uma de nossas esquinas porque há muito que ele queria e planejava partir. Não deixaria metade de si próprio aqui em um mundo onde não soube viver.
Mas eu os vejo sempre. De dia ou de noite. Dormindo ou acordada. Eu os sinto. Ouço. Ouço as risadas gostosas que há muito em vida ele não dava porque há muito seus pulmões o impediam de conversar. Rir então era algo tão proibido quanto andar livremente pelas ruas para conversar com os amigos. Ele, o meu pai, um homem bom. Homens bons e honestos são poucos e ele o era e passou a vida falando da única coisa antiética que tinha feito em longos anos de trabalho honesto: uma ação altamente duvidosa para recuperar a pequena padaria que havia vendido e longe da qual não conseguira viver. Muitas vezes ao acordar a noite um medo tão grande me assola que eu sinto a sensação de que basta chamá-lo pedindo um copo de água para que apareça. Ou então acordo sentindo o calor de suas mãos nas minhas, uma mão tão forte e segura que nem dava para acreditar que nessa ocasião era eu quem tentava diminuir os seus medos e suas angústias. Quantas vezes não entrei na Fábrica de Pão que nos garantiu a sobrevivência de tantos mesmo depois que partiu e não o senti lá, vigiando.
E ele, o baixinho, o que foi primeiro. Quantas vezes eu, bem jovem então, não passei as noites acordadas esperando que chegasse seguro e são em casa? Ainda hoje acordo de sonhos em que me pergunto será que ele já chegou para descobrir perplexa que esses anos vão tão longe que não deviam nem mesmo gerar este tipo de lembranças.
Mas, o último deles que partiu, não. Esse partiu faz tão pouco tempo que fica difícil ainda acreditar que nunca mais vai voltar. Ainda chegam cartas pelo Correio em seu nome e eu tenho que abrir como já fazia antes. Sua deficiência visual deixava em minhas mãos seus pequenos assuntos e por isto era em meu endereço que sua correspondência chegava. Quando rasgo esta correspondência e a jogo no lixo é como se estivesse rasgando um pedaço da minha vida que acabou. Uma história que escrevi. Penso então que a vida é mais frágil do que um papel e que basta um sopro para que tudo perca a razão de ser.
Muitas vezes caminhando pelas ruas eu os vejo ao longe, andando em outras calçadas, se afastando de mim. Apresso o passo, mas logo os perco de vista porque o que estou vendo não é a vista que vê. É o coração. Aí então eu faço alguma coisa besta para esquecer minha visão. Entro em uma loja e compro alguma coisa inútil ou quando estou sem dinheiro vou ver vitrines, ou simplesmente sento no banco da Praça pra ver a Banda passar.
Um dia desses resolvi alterar o roteiro e tomar uma medida drástica. Quase entrei em pânico. Descia e subia e não conseguia ver onde eles estavam finalmente morando, os três juntos, meu pai e dois de meus irmãos. Eu parava e lia as placas e nada encontrava, como se eu nunca tivesse estado naquela área. Bom, realmente não é um lugar aonde eu vá muito, na verdade vou quase nada, mas eu tinha que saber onde era. Afinal encontrei e um silêncio se fez na tarde quente. Só eu estava ali, mais ninguém. Eu e as sombras de minha saudade. Mármore branco, três placas, nascimento e morte: Geraldo e seu filho, Tarcisio e Ronaldo. Nada. O vazio. Ninguém estava ali. Só eu e meus pensamentos soturnos. Saí de lá quase correndo antes que a chuva caísse.
Saí de lá, mas um vazio enorme ocupou todo o espaço do mundo. Pobre túmulo estaria ali por muito tempo ainda a espera de novos ocupantes e ninguém saberia dizer qual de nós seria o primeiro. Poderia ser eu ou não. Mas quando eu fosse dormir em meu último leito certamente não seria mais eu quem estaria ali. Apenas ossos e carnes a espera da podridão. De se transformar em pó e ao pó voltar. Fiquei pensando se valeria à pena pedir que afixassem ali, junto ao meu nome e as datas limites, o epitáfio que escolhi faz tanto tempo quando eu ainda nem tinha certeza se ia gostar de viver assim tanto quanto gosto: Vida, se eu fosse exagerado, olhando para o meu passado, era capaz de pedir bis”. Com o nome do autor, é claro: o poeta gaúcho, Álvaro Moreira.
Acontece muitas vezes, durante o dia ou durante a noite. Da última vez foi na semana passada, eu acabava de dobrar a esquina em direção a minha casa: estava entrando no portão, a bolsa que eu lhe dei debaixo do braço e por um átimo de segundo tive a certeza de que era ele e meu coração se acelerou contente querendo se enganar. Mas não, o portão era o da casa vizinha e quem entrou foi apenas alguém querendo alugar a casa recém reformada. Assim que percebi diminui a velocidade dos passos porque meus olhos estavam cheios de água e eu não queria responder perguntas.
Eu o vejo mais do que aos outros porque afinal foi o último a partir e sua imagem ainda está muito viva em minhas retinas. Mas é uma tolice minha ter esta esperança de que posso encontrá-lo em qualquer uma de nossas esquinas porque há muito que ele queria e planejava partir. Não deixaria metade de si próprio aqui em um mundo onde não soube viver.
Mas eu os vejo sempre. De dia ou de noite. Dormindo ou acordada. Eu os sinto. Ouço. Ouço as risadas gostosas que há muito em vida ele não dava porque há muito seus pulmões o impediam de conversar. Rir então era algo tão proibido quanto andar livremente pelas ruas para conversar com os amigos. Ele, o meu pai, um homem bom. Homens bons e honestos são poucos e ele o era e passou a vida falando da única coisa antiética que tinha feito em longos anos de trabalho honesto: uma ação altamente duvidosa para recuperar a pequena padaria que havia vendido e longe da qual não conseguira viver. Muitas vezes ao acordar a noite um medo tão grande me assola que eu sinto a sensação de que basta chamá-lo pedindo um copo de água para que apareça. Ou então acordo sentindo o calor de suas mãos nas minhas, uma mão tão forte e segura que nem dava para acreditar que nessa ocasião era eu quem tentava diminuir os seus medos e suas angústias. Quantas vezes não entrei na Fábrica de Pão que nos garantiu a sobrevivência de tantos mesmo depois que partiu e não o senti lá, vigiando.
E ele, o baixinho, o que foi primeiro. Quantas vezes eu, bem jovem então, não passei as noites acordadas esperando que chegasse seguro e são em casa? Ainda hoje acordo de sonhos em que me pergunto será que ele já chegou para descobrir perplexa que esses anos vão tão longe que não deviam nem mesmo gerar este tipo de lembranças.
Mas, o último deles que partiu, não. Esse partiu faz tão pouco tempo que fica difícil ainda acreditar que nunca mais vai voltar. Ainda chegam cartas pelo Correio em seu nome e eu tenho que abrir como já fazia antes. Sua deficiência visual deixava em minhas mãos seus pequenos assuntos e por isto era em meu endereço que sua correspondência chegava. Quando rasgo esta correspondência e a jogo no lixo é como se estivesse rasgando um pedaço da minha vida que acabou. Uma história que escrevi. Penso então que a vida é mais frágil do que um papel e que basta um sopro para que tudo perca a razão de ser.
Muitas vezes caminhando pelas ruas eu os vejo ao longe, andando em outras calçadas, se afastando de mim. Apresso o passo, mas logo os perco de vista porque o que estou vendo não é a vista que vê. É o coração. Aí então eu faço alguma coisa besta para esquecer minha visão. Entro em uma loja e compro alguma coisa inútil ou quando estou sem dinheiro vou ver vitrines, ou simplesmente sento no banco da Praça pra ver a Banda passar.
Um dia desses resolvi alterar o roteiro e tomar uma medida drástica. Quase entrei em pânico. Descia e subia e não conseguia ver onde eles estavam finalmente morando, os três juntos, meu pai e dois de meus irmãos. Eu parava e lia as placas e nada encontrava, como se eu nunca tivesse estado naquela área. Bom, realmente não é um lugar aonde eu vá muito, na verdade vou quase nada, mas eu tinha que saber onde era. Afinal encontrei e um silêncio se fez na tarde quente. Só eu estava ali, mais ninguém. Eu e as sombras de minha saudade. Mármore branco, três placas, nascimento e morte: Geraldo e seu filho, Tarcisio e Ronaldo. Nada. O vazio. Ninguém estava ali. Só eu e meus pensamentos soturnos. Saí de lá quase correndo antes que a chuva caísse.
Saí de lá, mas um vazio enorme ocupou todo o espaço do mundo. Pobre túmulo estaria ali por muito tempo ainda a espera de novos ocupantes e ninguém saberia dizer qual de nós seria o primeiro. Poderia ser eu ou não. Mas quando eu fosse dormir em meu último leito certamente não seria mais eu quem estaria ali. Apenas ossos e carnes a espera da podridão. De se transformar em pó e ao pó voltar. Fiquei pensando se valeria à pena pedir que afixassem ali, junto ao meu nome e as datas limites, o epitáfio que escolhi faz tanto tempo quando eu ainda nem tinha certeza se ia gostar de viver assim tanto quanto gosto: Vida, se eu fosse exagerado, olhando para o meu passado, era capaz de pedir bis”. Com o nome do autor, é claro: o poeta gaúcho, Álvaro Moreira.