2 – Por onde andarão minhas lembranças?


       Constato agora que é verdade: chega uma época da vida que buscamos mais as lembranças do que os sonhos. Ou porque os sonhos já foram realizados ou porque sabemos que não haverá mais tempo para sua realização ou ainda porque se aprendeu a viver o dia a dia sem muitas expectativas para com o futuro. Porque o futuro não existe mas o passado sim, embora não mais em tempo real. Mas as lembranças são teimosas: só chegam quando querem e transformadas pelo tempo. Venho tentando lembrar-me de uma época gloriosa em minha vida. A época em que elaborei a maior parte de meus sonhos, idealizei meu futuro. Mas essa época se mistura de tal forma em minha mente que mais parece um sonho dormindo do que uma tentativa lúcida de recordação. Foi um período de aproximadamente quatro anos e meio em que vivi como estudante em dois colégios internos. Primeiro em Andrelândia, depois em São João del Rei. Nesse período descobri que era parte do mundo e, melhor ainda, que havia um mundo muito além dos morros que cercavam Arantina. Nesse tempo, nesses lugares, construí a base de meu pensamento intelectual, político e social. Mas, por mais que me esforce não consigo identificar nem pessoas, nem lugares nem situações. Tudo se transforma em uma miscelânea. Sei que os sinos tocavam em São João del Rei o dia inteiro, mas não me lembro mais da sonoridade de suas mensagens. Também não me lembro onde o vento soprava tão triste evocando velhos fantasmas e o por do sol inspirava poemas nem sempre escritos. Não me lembro também onde ouvia Frank Sinatra e treinava escondido os meus passos de dança. As escadas, por onde eu descia pelo corrimão quando ninguém via, se misturam: onde ficava a escada de canto, onde ficava a escada central que se abria para dois corredores? Em qual dos armários embaixo da escada morava o velho fantasma que tanto assustou minhas noites insones? Nem professores, freiras ou leigos, nem colegas eu posso distinguir: as lindas irmãzinhas com nomes franceses, o velho capelão de nome italiano, estarão vivos ou mortos? Em qual biblioteca eu me perdia debaixo das cortinas que protegiam as estantes e eu lia revistas estrangeiras? Em quais estantes eu retirava livros de artes para me deliciar com histórias e figuras mitológicas? Nomes e imagens se misturam e eu não sei onde colocá-las: Enelci, Rosa Maria, Conceição, Betânia, Haydée, Clelia, Vandas e Uílma? Shirley eu sei, morreu com câncer. Anne Shirley morreu em acidente de carro. Mas as outras? De onde eram para onde foram? Como são seus rostos hoje? Se nos víssemos em lugar tão longe de nós, seríamos capazes de nos reconhecer e lembrar as velhas confidências? Onde havia uma sala de cinema que exibia filmes todas as segundas feiras e onde eu podia chorar com as histórias tristes? Onde foi que meu sapato supostamente voou de meus pés e atingiu no rosto jovem freirinha assustada? Foi realmente um gesto de rebeldia social como gosto de pensar ou uma atitude imbecil de uma menina sem juízo querendo se afirmar? E a revolta do capim, existiu mesmo ou só foi imaginação? Um bando de molecas comendo a grama dos jardins em protesto a mesmice das refeições. Se tempo ainda houver para tantas lembranças sei que um dia as verei claramente porque parece que é assim que funciona. Quanto mais distante fica no tempo mais a memória é ativada.Talvez por isto eu esteja agora revivendo as memórias da primeira infância e em uma próxima fase virão com clareza as memórias da pré adolescência. Mas por hoje se misturam de forma tão complexa que não hesito em perguntar: Seria realmente eu quem vivi essa vida e senti essas emoções ou são apenas lembranças de outras vidas que li em horas perdidas? 
 
(segundo texto do meu livro em embrião De frente para trás ou de trás para frente, tanto faz, faça como lhe apraz.)