Des-ACORDO
Todos os anos é a mesma coisa. Um ano que acaba, outro que começa, e eu no meio - sonhando com uma porta que possa separá-los definitivamente.
Uma porta que deixe bem clara a fronteira entre passado e presente, e atrás da qual me possa esconder da perseguição das coisas que não me agradaram, mas que teimam em acompanhar-me.
Uma porta suficientemente forte para conter do outro lado tudo o que lá deixei, e ainda tudo o mais que eu para lá mandar, principalmente se for empurrado com chutes na bunda.
Uma porta, enfim, que me dê tranqüilidade para pensar que posso começar do zero o novo ano, sem que este venha acompanhado das contaminações do passado recente.
Mas não adianta, e sempre acordo desse sonho vendo que não fui capaz de deixar para trás todos os horrores de que queria fugir, e que alguns ainda me acompanham e cercam sempre que paro para retemperar forças, entre combates.
Este ano são os tremas que me perseguem acintosamente. E esses safados dos hífen, acampados por entre moitas de exceções e inutilidades, armados com regras letais que fazem o meu computador sangrar, sublinhando a vermelho um monte das palavras que escrevo.
Isto para não falar do vovô, coitado, que graças a um tal de Acordo que dizem que houve por aí, passou de erudito a desinformado. Fechou a escolinha que tinha aberto nas traseiras lá de casa, e diz que não dá conta nem de escrever direito, quanto mais de ensinar os outros.
Com isso, o vovô agora quer é namorar e já anda dizendo que vai mesmo é dedicar-se a sacudir o esqueleto nos bailes funk com a galera, e não pára de me pedir que o apresente a umas moças que eram professoras na roça, e que agora vieram morar aqui pertinho.
Não sei se ele tem esperanças de que elas o ajudem com a nova ortografia, ou se quer apenas convidá-las para uns agitos noturnos da pesada. Mas avaliando por um bilhetinho que elas lhe enviaram, haja Acordo para justificar tanta exceção.
No que me diz respeito, procuro apenas o sossego. Um cantinho onde as regras não sejam mudadas á toa, só porque alguém se lembrou, para que eu possa chegar a escrever corretamente, um dia. Pelo menos tão bem quanto o vovô, nos tempos da sua escolinha, onde conseguia o que a escola mais próxima não era capaz: - alfabetizar.
Assim sendo, já mandei uma circular a todos os meus amigos e contactos, pedindo-lhes o favor de não me enviarem mais resumos das novas regras, nem do tal Acordo.
Estou decidido a continuar escrevendo como sempre fiz e, se houver erros na minha ortografia, por favor não os considerem resultado da minha ignorância, mas do meu protesto. E estremeço só de pensar como vai ter gente protestando...
E continuarei protestando indefinidamente, mesmo sob a convicção de que será inútil. Pelo menos até me convencer que vale a pena gastar milhões para atualizar os processadores de texto dos computadores que usamos no dia a dia, em vez de gastá-los no combate ao analfabetismo.
Até lá, creio que vou acompanhar vovô aos bailes funk, onde estas esquisitices ortográficas não fazem o menor sentido, e onde impera a verdadeira língua-mãe, sem Acordos, nem tremas, nem hifens: - a errada! Protestando bem ruidosamente! Será que ninguém escuta?
Janeiro indignado, 2009