ESCRITURAS

Para Nádia Stevanato

A escrita é uma atividade estranha, não raro, melancólica como o murmúrio de um louco. Quando se finaliza um texto e já pode ser lido como se fosse alheio, o leitor começa a perceber o que realmente fez: aqui, esta informação é auto-referente, ali, essa frase exige ponto final e novo parágrafo, lá, aquele conceito deve ser substituído por metáfora. Ao ler, começa a reescrever o texto, ou melhor, já está escrevendo o próximo.

Em entrevista, Ítalo Calvino disse: Costumo andar com uma idéia na cabeça durante anos antes de decidir-me a dar-lhe forma no papel, e muitas vezes nesta espera deixo-a morrer. Para começar a escrever alguma coisa preciso sempre de um esforço de vontade, porque sei que me espera a fadiga e a insatisfação de tentar e voltar a tentar, de corrigir e de reescrever.

De minha parte, vivo anotando frases em papéis soltos que fatalmente se perdem. Não sinto qualquer prejuízo ou remorso por isso. Acredito que se a idéia é boa, voltará, se não for, valia a pena tê-la anotado?

James Joyce pensava que sempre se escreve para um "outro eu". Um duplo de nossas ansiedades, pretensões e incapacidades, suponho. Este duplo sabe mais que nós porque surge depois da obra terminada, chega sorrateiro e faz uma leitura irônica. De fato, nossa (auto)crítica se desenvolve enquanto (e por que) estamos ocupados em escrever. Crítica imprescindível, dirá o escritor experiente. Somos obrigados a concordar, porém, é necessário que se diga: tal leitura é dolorosa e preferiríamos evitá-la.

Existe um pre-conceito (sic) entre autores, leitores, críticos e editores, que diz que bom escritor é aquele que elimina palavras em cada leitura do original. Alberto Moravia afirmava que escrevia em camadas superpostas. Em cada leitura descobria novas possibilidades. O primeiro rascunho é bastante cru, dizia, mas já tem sua estrutura final e a forma visível. Depois reescrevia tantas vezes - aplicava tantas camadas - quantas fossem necessárias. É como trabalham alguns pintores que operam com texturas, transparências, veladuras, e até agregam novos motivos ao quadro. Estudos demonstraram que o imponente cavalo pintado por Diego Velázquez no primeiro plano de "A rendição de Breda" foi acrescentado "depois" da composição "pronta". Haverá alguém capaz de imaginar esta obra sem a majestosa garupa desse animal?

Singular também é a memória que se guarda do texto "final". Não é incomum que quando acreditávamos tê-lo esquecido (superado, diz a vaidade), retorne para nos mostrar suas deficiências, obrigando-nos à releitura, reescritura, poderíamos dizer.

Jorge Luís Borges contava que às vezes, ao percorrer as livrarias de Buenos Aires, soía encontrar um dos seus primeiros livros, de cuja execução já se arrependera (talvez aquele fabricado com ajuda de um dicionário de argentinismos), e se não fosse muito caro, comprava-o para queimá-lo em casa (numa cerimônia secreta, sou tentado a acrescer, como Pierre Menard seus manuscritos do Quixote num subúrbio de Nîmes). A drástica atitude de Borges ilustra um aforismo de Horacio Quiroga: "Todo escritor tem um primeiro livro para se arrepender".