Banalidades
BANALIDADES
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 21.01.2009)
Organizaram a festa. Pretexto: dois ou três aniversários na turma. À noite, 20 carros em frente ao local, a casa de um deles em um bairro tranquilo e sossegado. Supostamente tranquilo e sossegado. Festa em casa, dizem, deixa todos mais à vontade especialmente porque não há hora para terminar. Pode-se cantar, beber, curtir som ao vivo e projetar fotos deles e clipes de bandas.
Eventualmente algum vizinho se incomoda e, lá pelas tantas (que pode ser às duas da madrugada ou logo às dez da noite, dependendo do seu grau de intolerância e do nível do seu mau humor), convoca a polícia, reclamando do "barulho ensurdecedor" que não respeita nem mesmo uma noite de sábado - ainda que uma noite assim ocorra uma vez por semestre.
Quando faltou cerveja ou vodca - que sempre acabam no meio da festa, independente do estoque armazenado -, alguém saiu para reabastecimento. Foi quando viu três ou quatro carros arrombados na frente da casa, obra limpa e discreta executada com precisão cirúrgica por profissionais do crime: o mínimo de dano aos veículos e alarmes que não tocaram mais do que duas vezes (porque a fiação foi rapidamente cortada junto à bateria ou a sirene emudecida por pancada certeira que a esfacela).
O resultado é o sumiço de bolsas recheadas de documentos, cartões, dinheiro e talões de cheque, imprevidentemente deixadas nos porta-malas, de rádios a roupas (menos livros, ninguém rouba livros), até a roda sobressalente de uma dessas caminhonetes que a carregam às costas.
- A culpa é do Lula, esse governo de merda que não cuida da segurança da gente! Tem que metralhar todo mundo: bandidos e governo!
Na Polícia, o plantão reclamou que o queixoso já estava ocupando por tempo demasiado uma das linhas do 190, número exclusivo para emergências, para assuntos sérios:
- Temos mais o que fazer do que atender ocorrências de roubo em carros! - vociferou o policial. - Isso é coisa da gangue do carro preto. Acontece aos montes todo final de semana!
Como de hábito, ninguém registrou queixa na delegacia.
Não sei se Charles Perrone, professor da University of Florida (EUA) que estuda a crônica brasileira, vai concordar, mas parece que o papel do cronista é mais ou menos esse: abordar no seu canto uns assuntos banais, umas besteiras, essas trivialidades que não encontram espaço nem interesse seja na preocupação da Polícia, seja na pauta da Imprensa.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas, Editora Garapuvu, Florianópolis)