Sangue na plataforma II
Com o despertar inquietante do contumaz celular, mais do que o meu sono por sinal, levantei-me com abundante dificuldade, assim como em todas as típicas segundas-feiras para a maioria dos trabalhadores assalariados. Não quis parecer repetitivo ou solilóquio, mascarei então um bom humor fictício que, entretanto, não foi capaz de enganar nem sequer a mim mesmo, quanto mais a quem olhasse meu semblante consternado.
Afetado pelo cansaço mas vencido pela necessidade maior de levantar para vencer mais um dia de batalha, pus-me de pé. Um som muito forte começou a tomar conta de meus ouvidos. Sim, eu reconhecia. Era música. Mas um tipo de música que me perturbava profundamente. Em especial na segunda de manhã enquanto tento tomar meu desjejum. Gritos agudos formando palavras pouco audíveis e menos discerníveis ainda, ensurdecidos pelos metais que encobriam o arranjo. Sax-alto, trompete e mais alguns bem agudos. Dizia algo como "mergulhar na glória" de não sei quem, somado de muitos "aleluias" que não faziam juz ao significado da palavra. O último 's' de Jesus, sempre pronunciado de maneira sibilante típico de alguém que tem um problema na fala, ou na mente.
Hipócritas, pensava eu. Sei...quem sou eu para julgar outros? Mas é bem simples. Quem canta e grava esse tipo de canção, usa o seu 'louvor' para ganhar a vida e ser ídolo de um monte de gente simples e necessitada de fortes emoções. A música faz isso. Emociona. Exatamente o que elas querem. E acreditam precisar.
Quem ouvía a música, e eu sei o que falo, não tem a vergonha na cara o bastante - desculpe os termos chulos - para levantar a bunda do sofá e sair para falar do seu Jesus aos pobres, ou visitar os doentes nos hospitais, crianças carentes em orfanatos ou coisa que o valha. É muito mais fácil colocar um cd pirata de "dois real" tocando no último volume, dando seu "testemunho", e depois ir dormir o sono mais tranquilo e reestabelecedor do mundo.
Após essa via crúcis de mão única, segui para a estação, onde pego todos os dias, religiosamente, meu trêm para ir trabalhar. Enquanto chovia forte eu me aproximava do meu local costumeiro de embarque, ao mesmo tempo que olhava para os transeuntes que também iriam embarcar. Havia um com uma Bíblia em baixo do braço, provavelmente esse iria em breve começar, no terceiro vagão, a dar "testemunho" de algo que ele viu ou sonhou. Um engravatado, muito bem arrumado, por sinal e um homem que não me chamou atenção de imediato. Usava uma regata cinza-desbotado e um Jeans que parecia ter sido tecido durante a primeira guerra. Sapatos sujos e um olhar morto.
Ao me virar, sabendo que o trêm na direção oposta se aproximava, ouvi e vi com minha visão periférica o mesmo atropelar o homem em cima da plataforma. Á medida que o trêm era conduzido pela sua enorme força, as pernas do embotado homem era pressionadas entre o trêm e a plataforma. Ele apagou na hora.
Um que chegava ao local, corajosamente aproximou-se e o puxou evitando que o estrago fosse maior, se é que isso seria possível.
Fiquei estático. Pensei e sua familia. Sua mãe, talvez esposa, filhos. Estava indo trabalhar, como eu e não tinha sequer uma roupa melhor para usar, como eu. Concordo que ele estava na beirada da plataforma, mas seria esse o motivo? De quem seria agora a culpa? Adiantaria encontrar o culpado? Honestamente não sei. Sei que passei o dia me sentindo culpado, não por não fazer nada, pois nada podia fazer. Não por não tentar salvá-lo, pois não havia a quem salvar. Senti-me culpado por entrar no próximo trêm, como dezenas de pessoas, e continuar minha inútil vida como se nada tivesse acontecido.