MORRO DE SÃO PAULO

Passei estes últimos dias com cara de “Como assim?”, sem saber se ria ou chorava. Perdi, na manhã de quarta-feira passada, uma das minhas mais queridas amigas e da forma mais estúpida possível: atropelada em plena Avenida Paulista. O problema é: não estou triste. Estou é puta-da-vida! Puta com as autoridades, com esse trânsito caótico de São Paulo, com todos os motoristas de ônibus da face da terra, e, acima de tudo, puta-da-vida com ela e essa mania besta que ela tinha de querer fazer a parte dela para um mundo melhor e mais saudável.

Dona de um bom humor inabalável, ela deve ter passado a tarde toda, enquanto estava lá plantada no meio da Paulista, esperando o camburão do IML que não chegava nunca, rindo da cara dos passantes estupefatos e dos motoristas enfurecidos com aquela famosa até então anônima que resolveu morrer na faixa da direita atrapalhando o trânsito.

Fala sério, já ouvi falar de um monte de gente que morre por insistir em hábitos específicos, mas os obtuários, nesses casos, usualmente incluem palavras do tipo overdose, cirrose hepática, câncer de pulmão (aliás, todo mundo, inclusive ela, já me disse uma vez ou outra que ainda morro de um desses), Márcia morreu de São Paulo, que ela amava tanto, e São Paulo, prá mim, que desapaixonei e me mandei uns anos atrás, morreu um pouquinho com ela.

Tá, ela era meio esquisita, acreditava n’umas coisas exdrúxulas tais como desenvolvimento sustentável, alimentação saudável, esportes, responsabilidade social, adote um bichinho abandonado (ou dois, ou três, ou uns quinze...), direção defensiva, sufrágio universal, cidadania, pedale mais/ polua menos... coisa de gente doida, resumindo. Acreditava até no Brasil e no PT! Imaginem! Ainda por cima, tinha o excêntrico hábito de viver de acordo com suas convicções... Bom, seria excêntrica se fosse rica, como não o era, então era maluca mesmo... lindamente maluca!

Cicloativismo, por exemplo, é palavra nova no meu vocabulário, ela bem que tentou, mandou uns e-mails, postou umas fotos, mas eu estava muito ocupada correndo prá-lá-e-prá-cá (de carro, lógico!), prá refletir sobre o assunto, o quê, juntado ao meu umbigocentrismo, hoje vivendo em um lugar em que, se eu quiser pedalar amanhã posso fazê-lo com total segurança porque alguém já cicloativou muito tempo atrás, torna-se ainda mais irrelevante.

Márcia tinha dezesseis anos e uma Caloi 10 dourada quando a conheci, morreu quarta-feira, aos quarenta, sob as rodas de um ônibus apressado, pedalando por um mundo melhor e menos poluído prá mim, prá você e prá um bando de gente que não liga a mínima. Uma pessoa muito melhor que eu, muito mais saudável que eu e, até ontem, muito mais viva que eu. Estão politizando sua morte, ela deve estar adorando! Não vai ter velório, não vai ter enterro, a doida queria ser doada prá Escola Paulista de Medicina e assim foi feito; Vai ter festa e bicicletada – bem a cara dela!

Seus últimos desejos, conforme arquivo encontrado hoje pela família em seu computador pessoal:

“Quero ser inteira doada: órgãos para reuso, corpo para estudo, de preferência para a Escola Paulista de Medicina. Se for acidente de bike ou de moto, saibam que vou feliz. Viver ou morrer é o de menos. Ser feliz ou não é uma questão de talento.”

In Memorian de

Márcia Regina de Andrade Prado

17/11/1968 – 01/14/2009

Boa pedalada pelas bandas d’aí de cima, minha amiga!

Dalila Langoni
Enviado por Dalila Langoni em 21/01/2009
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