Violoncelo

Em recente almoço de família, reencontro um velho tio – 90 anos, surdo, e a quem também supunha praticamente caduco. Cumprimento-o, mas logo, como os demais, deixo-o em seu isolamento. A certa altura, porém, ponho as mãos em concha e lhe pergunto o mais alto que posso:

- O senhor consegue me escutar?

- Mal – ele me responde.

Segue-se um diálogo precário, durante o qual ele me explica as dificuldades que teve com o aparelho para surdez e outros azares. Para meu espanto, seu discurso é coerente, sem nenhum traço de insanidade, melhor que o de muitos jovens presentes. Emite as palavras em voz rouquenha e lamentosa como o timbre de um violoncelo. A sensação que tenho é a de que, posto a tocar, o gramophone guardado no quartinho dos fundos dá conta do recado.

Pergunto, então:

- Tio, o senhor gosta de ler? Tem lido o noticiário político?

- Eu leio a Isto É. Ela tem muita política.

- E aí, o que tem achado da situação? Em quem o senhor vai votar?

- Tá difícil, né? O Lula deu no que deu, e o Alckmin é muito fraco. Até chamam ele de “picolé de Chuchu” (rs).

Ouço-o mais um pouco, a tecer considerações sensatas sobre o quadro eleitoral, e refaço mentalmente a trajetória do homem tímido, trabalhador, embora mais frágil que a esposa, física e emocionalmente. O que me encanta sobretudo é a consciência lúcida, como música preservada numa caixinha que o tempo machucou.

Nelson Oliveira
Enviado por Nelson Oliveira em 15/04/2006
Reeditado em 23/04/2006
Código do texto: T139465