Lembranças

Finalmente alcançou a rua. Respirou fundo e gozou o exito da entrevista. Já esperava que fosse bem sucedida. O calor era intenso, quase cinco horas da tarde. Depois daquela vitória, ele não podia voltar para casa de “quentão”. Preferiu o conforto de um ônibus com ar condicionado.
Entrou, pagou a passagem e buscou com o olhar um assento nos fundos. Mas só havia um único lugar vago na segunda fileira, na linha do motorista, Assento de corredor. Estava meio desatento, porém, não pode deixar de notar a bela mulher sentada na primeira fila do lado oposto.
Fechar os olhos, respirar fundo e repassar os planos era o que pretendia, depois de se acomodar na poltrona, aproveitando a proteção das cortinas contra o sol forte do horário de verão. Ainda tinha decisões muito importantes e muito sérias para tomar.
No entanto o olhar oblíquo daquela mulher o atingira em cheio no coração como uma flecha. Os segundos não foram suficientemente rápidos para ele deixar de perceber aquela silhueta bem conhecida. 
Deixando de lado, por um instante, os seus intentos, acomodou-se na poltrona, fechou os olhos e começou a repassar exaustivamente aquela imagem inesperada: a mulher trajava uma calça jeans clara bem assentada no corpo, a blusa de alça na cor salmão deixava à mostra os seus ombros e uma  corrente fina e delicada  sustentava o singelo pingente que lhe adornava o pescoço; além da bela sandália branca e rasteira que guarnecia graciosamente os seus pés. Ela depôs no regaço a agenda que examinava,  levantou os óculos escuros e lançou-lhe um olhar penetrante como a sondá-lo por inteiro. Sua imaginação, que já o tinha levado longe de mais, ainda pôs nos lábios da misteriosa mulher um leve sorriso de sedução.
Abriu os olhos e percebeu que pelo reflexo do vidro a sua frente, podia observar todos os seus movimentos. Lá estava ela, por trás dos óculos escuros, exibindo uma expressão indecifrável, absorta em suas anotações, aparentemente esquecida dele.
Ao lado dele o passageiro da janela, acostumado ao trajeto, ressonava tranquilo. Com certeza, o seu relógio biológico o acordaria quando chegasse o destino. Examinou os outros passageiros. Todos estavam envolvidos consigo mesmos; seus pensamentos, seus problemas, suas leituras; nenhum burburinho sequer de conversa se ouvia.
Estava sozinho com seus botões e com aquela bela mulher sentada a sua frente a torturá-lo. Repassou a cena mais uma vez. Não era simplesmente uma bela mulher. Mas talvez não fosse ela. Pensou em abordá-la e tirar a dúvida. O leve sorriso pode ter sido fruto da sua imaginação. Afinal, quantas vezes ele já havia sonhado com aquele encontro casual? Ele não podia afirmar que a tivesse visto levantar os óculos e lhe lançado aquele olhar de soslaio.
Ela não mudou nada. A não ser que a maturidade lhe tinha dado um ar mais sério e uma beleza mais encorpada e serena. Seu penteado ainda era o mesmo; seus cabelos presos em forma de coque acentuavam a maciez de sua pele negra.
Olhares furtivos flagraram outros leves sorrisos que lhe deram a certeza: ela havia sorrido para ele. Todavia, agora se mostrava indiferente. Protegida pelos oculos e
scuros, ela levantava, de vez em quando o olhar, pensativa, e voltava em seguida a deslizar sua caneta sobre o papel, dando continuidade às suas anotações.

Um sorriso trêmulo e nervoso lhe sacudiu os ombros enquanto imaginava que ela lhe estivesse escrevendo um bilhete de amor para entregá-lo quando saísse do ônibus. Mas qual? Refletiu ele. Já se passaram tantos anos. Mesmo que ela se lembrasse dele, nenhum sentimento se manteria vivo por tanto tempo sem ser alimentado. Se ela o tivesse reconhecido, já teria se manifestado, concluiu por fim. Aliás, ele não entende até hoje como puderam se afastar daquele modo tão estranho. Nem se sequer uma despedida houve; uma palavra, uma explicação. Nada.

Ela interrompeu as suas anotações e levantou os óculos escuros apenas para lançar-lhe um olhar de desprezo ao vê-lo passar, para ele jamais esquecer, conjecturou. Se ainda sentisse algo por ele, qualquer que fosse o sentimento, ela não o teria ignorado. Era forte a sensação de desprezo.
Desprezo que doeu com mais força no peito quando ela arrancou a folha da agenda. Guardou a agenda na bolsa, ergueu-se da poltrona e falou ao motorista. Estava na sua hora de descer.
Antes de apear, ela virou-se para ele e sorriu. Ele levantou as mãos hesitante e lançou-lhe um olhar sério, compenetrado e principalmente surpreso quando ela estendeu a folha que arrancara da agenda.
Quando o ônibus retomou a viagem ele abriu lentamente a folha de papel. No topo da folha estava escrito em letra de forma:

LEMBRANÇAS.

“Lá estava você, 
Parado em frente a um portão
Ao lado do corredor que te levava até mim
Cabelos pretos partido ao meio,
Tua face brilhava como o luar
Nada escondia o contorno do rosto moreno 
Sorriso incomparável, terno e amigo...
Sorrindo com a própria alma
Me convidando a participar
Do momento sublime que é apaixonar
Temi muito nesta hora, 
Seu corpo bronzeado
Com cheiro de fruto molhado
Só de pensar chego arrepiar
Perdi o momento mágico
De tocar seu corpo, sentir seu cheiro
Traze-lo para perto de mim.
Um dia tudo se revelou
Você a outra pertencia
E o que ficou na lembrança
Foi a esperança
De um dia poder te amar
Sem fronteiras, sem regras
Só nos deixando levar 
Pelo momento que há.”.


Não podia acreditar naquelas palavras. Por que só agora? Indagava-se perplexo. A tanto tempo que buscava uma explicação; a certeza daquele amor. Maldita ingenuidade, que fê-lo que crer que fora desprezado e, por conta disso, teria ignorado completamente aquela paixão. Por que não entendera os sinais?
Recostou-se na poltrona desolado, perdido na fantasia que logo se desencadeara... Sentiu a brisa soprar no seu rosto, enquanto as ondas acariciavam a areia da praia. Sentados na pedra, fora do alcance da arrebentação, terminado o beijo sôfrego de amor, suas mentes confusas, seus olhares desnorteados, sem ter onde se esconder.
Por que só agora? Talvez, na sua paixão introspectiva, ela não tenha sabido transmitir o amor que lhe devotava. Só agora recorda que apesar do aparente desprezo, ela nunca deixara de atender os seus telefonemas. E, por vezes, também ligava para ele. Até comprou-lhe, certa vez, um cartão no dia dos namorados. Quem sabe, tenha guardado com carinho todos os bilhetes de amor que ele havia escrito para ela. Ela nunca recusara sequer um.
Entristecido, reparou que ela usava, tal como ele, uma aliança na mão esquerda. Estava casada. E provavelmente era feliz, assim como ele.
Examinou a folha novamente a procura de um número de telefone, de algum e-mail, enfim, algum tipo de comunicação. Mas não havia absolutamente nada.
Era ela. Apesar de estar casado e feliz, ele nunca conseguiu esquece-la, apagá-la do seu coração, mesmo depois de tanto tempo. O grande amor da sua vida. Um amor que achava perdido. E agora pedido estava. Para sempre perdido, perdido, perdido... repetia quando o ônibus chegou no ponto final. Um amor perdido no tempo que o tempo não quis apagar.
Aquela revelação doía em seu peito.
Ainda precisava pegar um outro ônibus para chegar em casa. Mas ele preferiu seguir a pé como um bêbado sem rumo com sua cabeça girando em torno da pergunta que lhe cortava o coração.
Por que só agora?

        
 


Este texto faz parte da coletânea Alma Nua de Ivo Crifar, pela editora Baraúna.