Cada mergulho é um flash

Será que as câmeras digitais banalizaram a fotografia? Lembro-me de uma certa ocasião, eu ainda uma criança, fui acordada pela minha mãe cedinho: o fotógrafo viria naquela manhã a minha casa tirar umas fotos minhas, montar um álbum.Cenas assim poucos se vê, menos ainda, gente comprando filme para a máquina fotográfica. Tenho uma amiga que é louca por fotos, desde que adquiriu uma digital. Ela tira muita foto bacana, obviamente, mas de vez em eu olho para algumas e chego a pensar que ela não acertou o foco:

-Saiu desfocada, apaga e faz outra – sugiro.

-Não, é assim mesmo: “foto-conceito” – responde.

Respeito: mas será que se o filme da máquina fosse contadinho, como quando a gente era adolescente, ela tiraria tantas fotos-conceito? Sei lá!

Um adolescente comprou uma também: dez vezes sem juros, nessas lojas do tipo Casas Bahia. No primeiro final de semana, levou-a para o passeio com os amigos no shopping.Tirou fotos deles, das bagunças que fizeram e no outro dia, cedinho, baixou as imagens em seu Orkut. Recebeu um scrap:

-Nem me convidou pro passeio. Traíra!

Nem a Bruxa Má que não fora convidada para a festa da Bela Adormecida ficou tão ofendida! Resolveu então deletar a sua conta no Orkut, mas duas semanas depois, lá estava ele criando outra: onde é que ele iria expor seus retratos?

Um filho de uma conhecida sempre quis ser modelo, mas a grana pra fazer o tal book nunca pintava.Decidiu fazer ele mesmo as imagens.Fazia “caras e bocas” na frente do espelho e clicava em sua imagem refletida : a câmera digital também aparecia na foto, mas que mal há nisso? Exibir a própria máquina também dá certo glamour, principalmente quando se tem um modelo ultramoderno; outras vezes, despia-se, programava a máquina para clicar automaticamente depois de alguns segundos e corria pra fazer pose de “escultura” num canto semi-iluminado. Coisa de “nu artístico”, sabe? Muitos autoretratos depois divulgou as fotos num suposto site para modelos iniciantes.Um hacker mal-intencionado as usou para divulgá-lo maldosamente como garoto de programa. Desistiu da profissão.

Com a tecnologia nova, o narcisismo aumentou também. Minha tia mesmo vivia fugindo de fotos de família:

-Ai, não gosto de tirar foto, não sou fotogênica - defendia-se.

Um dia, começou a tirar fotos de si mesma com o celular. Gostou da brincadeira.Trocou de aparelho, comprou um com mais megapixels.Daí para a digital foi um pulo. Viúva, arrumou um namorado.Está sempre impecável, como se estivesse pronta para a qualquer momento ser fotografada.

Meu sobrinho navegava pela Internet e ria escandalosamente. A curiosidade me levou até ao computador.Ele estava vendo fotos bizarras de gente que tira foto de si mesma, se deixa ser fotografado ou fotografa alguém.Não sabia qual imagem era mais estranha, mas uma em particular me deixou embasbacada: era de uma garota de vinte e poucos anos dentro de uma bacia de alumínio fazendo uma pose sensual. Estava ridícula.Só pensei: “maldita globalização.”

A digital também trouxe vantagens: a rapidez da divulgação das imagens via Internet., na velocidade da comunicação que o mundo globalizado precisa.

Tenho as duas: digital e a tradicional, de filme. Quando acampei há alguns anos, a turma toda pronta para eternizar o momento na foto e, acreditem, das três câmeras digitais que estavam ali, nenhuma estava carregada.A foto só foi possível graças a minha velha Polaroid...a foto ficou excelente, na minha opinião: não era uma “foto-conceito”.




(Maria Fernandes Shu -19 de janeiro de 2009)









Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 19/01/2009
Reeditado em 06/05/2009
Código do texto: T1392479
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