Semínima
 
De alma cinzenta e caminhar medido o carrilhão do tempo não pára. Replicam os sinos às estações silenciosas em que janeiros olham para trás.
Perdidos de significados revivemos amores e apegos, deuses alternativos e desencontros em festa de vinhos, parreirais opacos e goles abissais.
Queremos voltar à unidade e perfeição, mas esta saudade do que não fomos não é senão completude idealizada no tempo. Tempo, esta medida de nossa criação, médico e monstro, que assim como cura, na mesma medida nos espanta e a qual queremos mil vezes negar.
Há um conto sobre um imperador que é mais ou menos assim: na meia idade o imperador, que conquistara todas as riquezas, mas não tinha amigos, entediado e saudoso queria experimentar novamente a sensação da omelete com amoras saboreada aos cinco anos de idade na companhia do pai, em meio a floresta em que se esconderam em plena guerra. Na ocasião uma anciã os encontrou famintos e cansados, após perderem-se da trilha do castelo, deu-lhes abrigo em sua cabana e alimento.
O imperador convocou o seu melhor cozinheiro para que lhe preparasse novamente aquela omelete com amoras, que lhe despertasse a perdida sensação de encantamento. Daria em troca, fortuna, nobreza e a mão da filha em casamento, mas se não obtivesse sucesso seria morto.
O cozinheiro disse-lhe, então, que o matasse logo. Não que ele não soubesse a receita da omelete, onde colher as amoras silvestres mais doces, os versos de encantamento para recitar enquanto a preparava, as medidas exatas dos temperos e os ritos para que ficasse saborosa e perfumada. Não era isso. Era que o sabor da infância, a companhia do pai, a aventura na floresta, até a ansiedade da guerra, não estariam presentes para devolver-lhe a sensação que a omelete lhe despertara há cinqüenta anos. O imperador encontrou, nessa ocasião, mais que o sabor da juventude, a sabedoria da simplicidade e a experiência sobre o futuro anterior.
O que chamamos felicidade vivida no passado, talvez não passe de um reconhecimento tardio do que agora vemos no outro e queremos para nós, como queremos tudo o que achamos que não temos.
Já não basta termos sido criados à imagem e semelhança. Devotos de nossos eus, buscadores de lendas urbanas, no afã da eterna juventude tomamos prazer, por felicidade.
Queremos pílulas para não sentir. Disfarçamos a vida, o calor, o frio e o que mais for crescimento. Achamos lindo ficar, beijar e adquirir. Nos apossamos de amigos, filhos, companheiros, elogios, pérolas, tesão. Tensa, a corda toca beleza sem medida. Queremos intensidade e rebentação.
Se a vida hoje é vazia, antes que venha a morte gloriosa, com fãs à cova rasa, aplauso  fantasmagórico, repensemos o sossego, a família, a praça, o banco, o passeio de mãos dadas e a bandinha a passar. A simplicidade de ser sol e sombra, dia e noite, pássaro em vôo livre e bem-estar sem comparação com o vizinho ou com a felicidade da televisão. Se a solidão é abraço, a poeira do que fomos dedilha semínimas no barro em que formamos nossas alegrias e significados.