Sono Abençoado
A insônia sempre foi uma constante na minha vida. Desde criança, eu acompanhava acordado noite após noite as fase da lua, via surgir a estrela d’alva. Nessas infindáveis vigílias noturnas, eu sofria o medo, que era meu algoz inseparável, fosse nas temidas noites plenas de luar ou na imensa negrura do quarto crescente. Uma aflição que jamais pude compartilhar com nenhum mortal.
Quando os primeiros raios do sol despontavam, trazendo alívio ao meu coração, eu levantava da rede, seguro, e sorria um sorriso largo para o meu libertador. Feliz com os sons da manhã, já esquecido do crepitar das folhas arrastadas pelo vento, que me apoquentava com a iminente aproximação do perigo.
Eu cresci, venci a fase do medo e a insônia diminuiu consideravelmente. Hoje, na maioria das vezes, eu durmo tranquilo a noite toda. Mas o hábito saudável de acordar cedo permaneceu. Não importa a hora que eu durma, sempre acordo cedo todas as manhãs.
Entretanto, naquele dia, acordei tarde. Tarde demais para os meus padrões. Perdi o rotineiro espetáculo do amanhecer. Não me sinto nada bem quando acordo tarde. Sinto-me cansado e logo preciso lutar contra o mau humor. Sempre digo para as pessoas o quanto elas perdem por não apreciarem o nascer do sol. E prego que não se deve acordar tarde, pois quem acorda cedo tem mais tempo pra viver.
Eu morava numa casa de fundos. Tinha um pequeno quintal, mas era grande o suficiente para me dar a sensação de liberdade que eu sempre gozei desde pequeno.
Já passava das oito horas da manhã quando sai para o quintal. E assim que a vizinha da casa da frente me viu acordado, veio me perguntar se eu havia atendido alguém logo cedo. Como a minha esposa trabalha com festas, além de bolos, doces e salgados por encomenda, não estranhei a pergunta. Respondi que não, mas fiquei intrigado com a expressão preocupada que ela tinha rosto.
Só mais tarde, eu entendi o motivo, quando ela revelou que a casa ao lado do meu portão havia sido arrombada. O dono da casa trabalhava em outra cidade e só vinha pra casa nos fins de semana. Era uma quarta ou quinta feira e eu só iria para o trabalho ao meio dia. Nem de longe eu imaginava o perigo que eu e a minha família havíamos passado.
Quatro homens invadiram a casa e levaram tudo o que foi possível carregar: tv, computador, conjunto de som e outros objetos de valor.
Nossa testemunha ocular foi acordada pela movimentação dos ladrões, nas primeiras horas, já sob a luz do sol, e ficou impotente para tomar qualquer atitude diante da situação. Seu quarto ficava no segundo piso, e da janela, por detrás das cortinas, assistiu toda a ação dos bandidos. O telefone ficava no andar térreo, porém, ela não podia descer sem que os gatunos a percebessem porque a escada não era protegida da vista deles. Ela temeu por nós, sabedora que era do meu hábito de acordar cedo.
Os homens depuseram os produtos do roubo em colchas de cama e em tapetes para transpô-los para o meu quintal, onde os deixaram até o final da ação, longe da vista dos que passavam na rua. E, é claro, eles saíram pelo meu portão.
A vizinha reconheceu um dos homens como sendo um suposto cliente de minha esposa, e que dias antes viera visitar-nos a pretexto de contratar uma festa. No entanto a visita fazia parte do plano. Era apenas uma sondagem do terreno.
Hoje sou muito agradecido a Deus pelo livramento. Provavelmente, não teria sido nada conveniente surpreender a ação dos ladrões. Não consigo imaginar qual teria sido a minha reação. O que eu teria feito naquele instante? Mais forte foi pensar na costumeira reação dos ladrões ao notarem a minha presença. Afinal, não é de praxe eles deixarem as testemunhas vivas.
Sono abençoado foi aquele que retardou o meu despertar. Que preservou a paz da minha família e possibilitou-a a continuar contemplando aquela cena cotidiana e muito peculiar: eu a passear pelo quintal, varrendo, limpando, meditando sobre a vida, projetando algo, procurando alguma coisa para fazer; e o meu suspiro de alívio ao ver finalmente todos de pé. Só então eu podia colocar o martelo, o serrote ou qualquer outra ferramenta em ação.
Diferente de outras vezes, eu levantei leve e alegre naquele dia. O espetáculo que me aguardava ia além do esplendor do alvorecer. Era a inefável sensação de ter de nascido de novo.
Este texto faz parte da coletânea Alma Nua de Ivo Crifar, pela editora Baraúna.
A insônia sempre foi uma constante na minha vida. Desde criança, eu acompanhava acordado noite após noite as fase da lua, via surgir a estrela d’alva. Nessas infindáveis vigílias noturnas, eu sofria o medo, que era meu algoz inseparável, fosse nas temidas noites plenas de luar ou na imensa negrura do quarto crescente. Uma aflição que jamais pude compartilhar com nenhum mortal.
Quando os primeiros raios do sol despontavam, trazendo alívio ao meu coração, eu levantava da rede, seguro, e sorria um sorriso largo para o meu libertador. Feliz com os sons da manhã, já esquecido do crepitar das folhas arrastadas pelo vento, que me apoquentava com a iminente aproximação do perigo.
Eu cresci, venci a fase do medo e a insônia diminuiu consideravelmente. Hoje, na maioria das vezes, eu durmo tranquilo a noite toda. Mas o hábito saudável de acordar cedo permaneceu. Não importa a hora que eu durma, sempre acordo cedo todas as manhãs.
Entretanto, naquele dia, acordei tarde. Tarde demais para os meus padrões. Perdi o rotineiro espetáculo do amanhecer. Não me sinto nada bem quando acordo tarde. Sinto-me cansado e logo preciso lutar contra o mau humor. Sempre digo para as pessoas o quanto elas perdem por não apreciarem o nascer do sol. E prego que não se deve acordar tarde, pois quem acorda cedo tem mais tempo pra viver.
Eu morava numa casa de fundos. Tinha um pequeno quintal, mas era grande o suficiente para me dar a sensação de liberdade que eu sempre gozei desde pequeno.
Já passava das oito horas da manhã quando sai para o quintal. E assim que a vizinha da casa da frente me viu acordado, veio me perguntar se eu havia atendido alguém logo cedo. Como a minha esposa trabalha com festas, além de bolos, doces e salgados por encomenda, não estranhei a pergunta. Respondi que não, mas fiquei intrigado com a expressão preocupada que ela tinha rosto.
Só mais tarde, eu entendi o motivo, quando ela revelou que a casa ao lado do meu portão havia sido arrombada. O dono da casa trabalhava em outra cidade e só vinha pra casa nos fins de semana. Era uma quarta ou quinta feira e eu só iria para o trabalho ao meio dia. Nem de longe eu imaginava o perigo que eu e a minha família havíamos passado.
Quatro homens invadiram a casa e levaram tudo o que foi possível carregar: tv, computador, conjunto de som e outros objetos de valor.
Nossa testemunha ocular foi acordada pela movimentação dos ladrões, nas primeiras horas, já sob a luz do sol, e ficou impotente para tomar qualquer atitude diante da situação. Seu quarto ficava no segundo piso, e da janela, por detrás das cortinas, assistiu toda a ação dos bandidos. O telefone ficava no andar térreo, porém, ela não podia descer sem que os gatunos a percebessem porque a escada não era protegida da vista deles. Ela temeu por nós, sabedora que era do meu hábito de acordar cedo.
Os homens depuseram os produtos do roubo em colchas de cama e em tapetes para transpô-los para o meu quintal, onde os deixaram até o final da ação, longe da vista dos que passavam na rua. E, é claro, eles saíram pelo meu portão.
A vizinha reconheceu um dos homens como sendo um suposto cliente de minha esposa, e que dias antes viera visitar-nos a pretexto de contratar uma festa. No entanto a visita fazia parte do plano. Era apenas uma sondagem do terreno.
Hoje sou muito agradecido a Deus pelo livramento. Provavelmente, não teria sido nada conveniente surpreender a ação dos ladrões. Não consigo imaginar qual teria sido a minha reação. O que eu teria feito naquele instante? Mais forte foi pensar na costumeira reação dos ladrões ao notarem a minha presença. Afinal, não é de praxe eles deixarem as testemunhas vivas.
Sono abençoado foi aquele que retardou o meu despertar. Que preservou a paz da minha família e possibilitou-a a continuar contemplando aquela cena cotidiana e muito peculiar: eu a passear pelo quintal, varrendo, limpando, meditando sobre a vida, projetando algo, procurando alguma coisa para fazer; e o meu suspiro de alívio ao ver finalmente todos de pé. Só então eu podia colocar o martelo, o serrote ou qualquer outra ferramenta em ação.
Diferente de outras vezes, eu levantei leve e alegre naquele dia. O espetáculo que me aguardava ia além do esplendor do alvorecer. Era a inefável sensação de ter de nascido de novo.
Este texto faz parte da coletânea Alma Nua de Ivo Crifar, pela editora Baraúna.