Viver é muito perigoso (e a culpa não é dos hippies)

Não é mole não. João Guimarães Rosa escreveu: “viver é muito perigoso”. O perigo me emociona. A dor e a angústia alheia, mais ainda, me emocionam profundamente. Os atos de heroísmo de determinadas pessoas me emociona – talvez pelo meu questionamento íntimo em face da possibilidade ou não de ser eu mesmo um pequeno herói. Hoje amanheci com o telejornal noticiando uma coleção de desgraças em profusão. Desastres naturais, incidentes aéreos e acidentes rodoviários, desastres familiares, desastres sociais de todo tipo, e, sobretudo, guerras. O conflito armado entre Israel e Palestina na Faixa de Gaza, as guerras no continente africano... Nos Estados Unidos, a história de um piloto que conseguiu evitar a morte dos passageiros do avião que houvera sido acometido de uma pane causada pela entrada de urubus em uma das turbinas que explodiu. O corajoso piloto fez um pouso de emergência em um rio e ninguém morreu. Ele se arriscou entrando duas vezes de volta ao interior do avião que estava na água, pra verificar se ainda havia alguém lá dentro. Então, diante de tudo o que vi, não tive como não chorar. E chorei bastante. Antigamente o meu horário de chorar diante dos telejornais era à noite. Agora me pego chorando logo pela manhã, e isso me é uma novidade – sempre tive na vida amanheceres mais leves e felizes, como um passarinho que festeja a chegada do dia. Os dias estão bastante pesados e está cada vez mais difícil amanhecer cantando.

Em Brasília crianças vendem e fumam crack a menos de três quilômetros do palácio do planalto, área de segurança nacional. Já cansei de ver gente culpando Bob Dylan e os Beatles por isso. Quantas vezes os músicos dos anos 60 e 70 não são responsabilizados pelo alargamento do uso de drogas ilegais e pelas conseqüências advindas disso? Puxa vida. Substâncias alucinógenas ou alteradoras dos estados de consciência existem desde os primórdios da história humana. Elas sempre foram usadas sem muitas restrições, seja recreativamente, seja como recomendação para a saúde, seja em forma de experiência religiosa. Cerveja, vinho, ópio, são coisas muito antigas. A própria Bíblia Sagrada, chega, em alguns versículos, a recomendar o uso de vinho, tratando-o como uma bebida que “traz alegria” – em outros versículos restringe o uso, verdade seja dita. Fato é que substâncias “chapantes” fazem parte da construção da história humana, em bons e maus momentos. Em felizes celebrações, assim como em situações embaraçosas e tristemente constrangedoras. Mas o rock e os hippies, não raro, são hoje "historicamente" apontados como os culpados pela disseminação do uso de drogas. É fácil apontar culpados. É mais fácil do que tentar compreender as intrincadas redes histórico-geográficas, com seus diversificados nós, que lavaram o mundo atual a ser como é. Só que precisamos de explicações e de soluções. Crianças não deveriam estar fumando crack. Crianças não deveriam ainda hoje estar sendo estupradas – esta uma prática comum em todas as épocas anteriores da humanidade. Crianças não deveriam estar sendo mortas em conflitos territoriais, como na Palestina (estes nada têm a ver com consumo de drogas ilegais). Crianças não deveriam estar fora da escola, ou freqüentando a escola só para poder comer – em escolas que não conseguem sequer proporcionar uma alfabetização decente. Crianças não deveriam estar sendo induzidas ao consumo de cerveja através dos famigerados comerciais de televisão. Acontece que desde que o mundo é mundo, desde que existe ‘humanidade”, as crianças tentam copiar os adultos. Acontece que os adultos são, na verdade, crianças. São crianças grandes, nada além disso. No seu livro História Social da Criança e da Família, o escritor francês Philippe Ariès relatou o fato de que na Idade Média não se tinha a noção de criança que se tem hoje. A criança era apenas um adulto em miniatura. Sua vestimenta era adulta, e até mesmo a representação de seus rostos em pinturas lembrava muito os rostos de pessoas adultas. Hoje percebo algo em caminho inverso: os adultos são crianças em tamanho aumentado. Talvez sempre tenha sido assim. Adultos brincam o tempo inteiro. Brincam de polícia e ladrão. Praticam jogos de guerra. Esperam por proteção divina como uma criança espera pela proteção do papai e da mamãe. Esperam por alguém para resolver seus problemas enquanto brincam. Em suma: esperam pelo herói. É daí que vem o sucesso de Jesus, do Superman, do Homem-aranha e do piloto de avião que ontem fez o magistral pouso de emergência naquele rio próximo a Nova York. Somos impotentes demais. Dependentes demais. Como crianças. Somos crianças curiosas e indefesas. E espero que não percamos a sensibilidade pueril que nos faz sorrir e chorar. È melhor assim. É angustiante sermos tão indefesos e ignorantes: este é o preço de sermos seres humanos. Sendo que a maioria de nós, creio, prefere ser gente a ser pedra. Gente sofre. Gente mata, morre, se embriaga, se entorpece, descobre novos remédios e novos venenos, faz música, poesia, cria histórias, fuça, descobre, se engana, inventa. Puxa vida... gente goza. E corre perigo. E como corre perigo... Seja viajando de avião, seja bebendo vinho, seja comendo batata frita, seja ouvindo rock, seja votando em quem não merece confiança, seja fazendo fofoca, dizendo suas “verdades”.