14 GRANDE COMPANHEIRO!

Amigo, amigo dócil e afável, amigo da família. Amigalhão até por debaixo d’água. Este o perfil correto que se pode traçar do que se foi.

Há cerca de doze/treze anos era amigo comum de todos nós, sob a tão sonhada paz da nossa coexistência pacífica.

Nunca tergiversava, nunca transgredia normas de amizade. Jamais punha em dúvida sua dedicação, quando chamado ou não a dar provas da sua meticulosa lealdade. Fiel e grande companheiro!

Vinte e quatro horas por dia sem mau-humor nem cansaço, vassalo de todos nós, olho em quem fosse forasteiro. Apesar de macróbio e solteirão, um trabalhador incansável.

Alguns casos esporádicos de amor, dizem que, por fora, era pai de muitos filhos. Assim, tirante as fugidelas que hora ou outra encetava, sempre fingindo frio interesse em bater pernas na rua, correspondia à fama de bom sujeito. Mas fugia com classe, e de supetão.

Embora nos esforçássemos para não parecer de todo usurários, ou, como se comenta, mãos-de-vaca, nós não lhe pagávamos salário algum pela prestação dos seus bons serviços. Dava duro, porém só fazia questão pela simples comida, às vezes sopa de pedra com o tempero de ossos. Altruísta, por nada deste mundo ele queria perceber salário. Como um socialista convicto, refugava o capital, próprio ou o de alguém.

Num encurtar de prosa, que nem o relógio, o cara trabalhava mesmo era de graça. E olhem vocês que, espontaneamente, sem marcar cartão de ponto, sem hábitos barnabés. Fazia-se de o guardião do nosso lar. Era tudo: guarda-chaves, o segurança, o ajudante-de-ordens, lugar-tenente, até o mordomo da casa.

Quantas vezes, lendo ou rabiscando apontamentos, ou assistindo à televisão, não o flagrei a me observar à distância, com atencioso esquadrinhamento de olhar! Como se quisesse me sugerir: “Aqui estou, patrãozinho, às suas ordens!” E eu nem agradecia o desvelo do amigo.

Ganhou apelido jocoso, mas com carinho, o nosso herói. Foi o porquinho do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” que lhe emprestara o nome, e por consenso doméstico. Isto se deu quando minha filha tinha, por aí, seus cinco ou seis anos, ou pouco mais ou menos. Rabicó, portanto, por escolha e sugestão da nossa guria, que também leva Emília em seu nome. Por causa deste particular, a garota sentia-se a própria boneca falante do Sítio e, carinhosamente, depois, rebatizou o amigo de “Rabi”.

Daria um doce para não andar agora, neste momento crucial de agrisalhamento de emoção, alinhavando crônica doída. Crônica doída e condoída de saudade, pois, na última sexta, aconteceu-nos uma tragédia à brasileira.

Rabicó, ou Rabi, na intimidade, o nosso cãozinho suru e alvinegro, alvinegro que nem meu Botafogo, inesquecível de tão camarada, morreu de desastre na avenida principal: foi atropelado. Mas recebeu serviço funeral com dignidade; cova a céu aberto, num terreno baldio.

Fort., 14/01/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 14/01/2009
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T1385273
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.