As trovas no tempo do lotação

LOTAÇÃO - era, ou é (?), um transporte coletivo muito comum no Rio de Janeiro onde o conheci na década de cinquenta.

Era um ônibus que só tinha a porta dianteira, não havia portanto borboleta. A segunda porta era desnecessária, exceto em caso de incêndios. O nome "lotação" vem do fato de não ser permitida a super-lotação e todos os passageiros seguiam viagem confortavelmente sentados. Um ônibus sem borboleta, sem passageiros em pé, tem seu curto corredor vazio percorrido em poucos passos, dispensando-se portanto a porta traseira.

Outra característica de tal transporte era não parar nos pontos depois que a lotação máxima era completada, tornando-o então um transporte mais rápido, o que para muitos compensava o preço mais elevado das passagens. Afinal desde aqueles tempos, "time is money", "et noblésse éxige", nada de amontoados suarentos.

Por ter abordado algo que o lado econômico tenha inspirado, cabem aqui algumas ilações que devem ter sido consideradas pelos investidores para decidirem as aplicações do seu rico capital em tal trem-bala, que não tinha o luxo do cruzador Expresso de Istambul.

Em primeiro lugar, o veículo transportava menos gente, por ser menos longo e também pelo fato de que o corredor não era considerado área útil de "carga". Não sorria o leitor, diante desse termo, pois nem sempre qualquer semelhança é mera coincidência.

Essa aparente desvantagem seria compensada plenamente se o tempo da viagem fosse mais curto: - se transporto metade dos passageiros que transporta um ônibus comum em cada viagem, e faço o dobro das viagens, no final de um dia, transporto o mesmo número de passageiros.

Para compensar a maior quilometragem rodada, além da vantagem da passagem mais cara, há que se considerar que não tendo um cobrador na borboleta que, como dito, não existia, o motorista acumulava tal função, restabelecendo-se o equilíbrio da equação. Eu era menino e admirava a habilidade do motorista-cobrador, tendo em uma das mãos sobre o volante, e entre os dedos, um girassol de cédulas dobradas, coloridas, à guisa de como faziam os antiquados cobradores de bonde. A idéia foi lançada naqueles Anos Dourados e essa flor e a borboleta, certamente hoje nos remetem aos primórdios da Ecologia.

(Por falar em redução de empregos, aqui abro um parêntesis.

Em tempos de Getúlio Vargas, outro populista demagogo, um gentleman estadista gaúcho que amarrou os seus cavalos no Palácio do Catete, a economia no emprego da mão-de-obra também não devia ser vista com bons olhos.

Mas tudo bem!...A atividade de transporte, o consumo de combustíveis, o incentivo ao crescimento das frotas de veículos automotivos que mais tarde viabilizassem a siderurgia, a FNM e a indústria do petróleo, tudo como preconizava o Plano de Metas Estratégicas, alinhavam-se com a aparente modernização da vencedora potência no pós-guerra, e isso aplacaria a ira dos deuses contra aqueles que não acatavam as posturas ditas oficiais.

Tudo como sói acontecer: em nome do sagrado direito de locomoção do povo em busca do seu pão-de-todo-dia, tudo se justifica em um mundo não perfeito, mesmo que seja o corte de alguns empregos. Não retaliar, dar espaços à sadia oposição ou aos rebeldes são a maior comprovação da reinante democracia - assim pensam alguns autocráticos, dialeticamente.)

Mas voltemos ao lotação, que como vimos tinha na rapidez seu forte-mercadológico estratégico. Implementá-lo de fato era questão de vida-ou-morte e há charges e crõnicas daqueles tempos, nem tão românticas e sensuais como a "Dama do Lotação", a registrarem as consequências de tal desafio. Nas charges, marcaram época os lotações fumarentos super-lotados - Oh! injustiça, descaracterizando um nome tão solene!... - com a aparência e aparatos das bigas romanas, as foices nas rodas, os motoristas com o "bárbaro" chapéu-de-chifres dos Vickings, alguns esbaforidos, outros mal-humorados, talvez pelo flagrante fotográfico dos chifres naturais. Nas crônicas n´O Cruzeiro ou nas páginas policiais a denúncia dos abusos de velocidade, aos abalroamentos, aos tombamentos e aos "tumbamentos" - pura falta de compreensão ou de reconhecimento a tão nobres propósitos de quem corria muito somente para poder viabilizar o meio de transporte necessário. Deve ter sido coisa da oposição e dos concorrentes, ou dos fazedores de "terra-nas-bundinhas-das-meninas" diante da ameaça de extinção dos corredores superlotados dos ônibus convencionais. Nas fotos antigas é comum encontrar tais veículos andando transversalmente ao eixo das avenidas, que afinal, se os pontos continuavam nas calçadas, não era possível andar em fila com aquelas imensas "tartarugas" que convergiam aos mesmos pontos. Ainda hoje penso que aquelas fotos ou situações inspiraram muitas cenas de engarrafamentos de trânsito nas revistas em quadrinhos - benevolência de um povo que não quis patentear suas invenções.

Mas afinal, o que faz aqui esse texto, prosaica descrição de coisas sobre o lotação, em um espaço de trovas? - talvez me perguntasse o não-prolixo e preclaro trovador. E eu explico:

É que com o poder de síntese duramente aprendido ao tentar escrever as trovas, os haicais e poetrix, passei a ser assim, tão lacônico, e resolvi propor que escrevêssemos trovas concisas, de apenas quatro versos com sete sílabas, onde se repetisse uma coisa que li nas Escrituras Sagradas e que também reparei acontecer nos lotações: "Os últimos serão os primeiros!" E assim os que quiserem fazer essa viagem que continuem as trovas que seguem como nos lotações: os últimos que entram são os primeiros a sair, por não haver a porta de trás:

- O último verso da trova que antecede será o primeiro verso na trova que lhe sucede.

Marco Bastos

rs.

E aqui as primeiras trovas:

Hum....Lotação

Sou um tanto desligada

e aqui não encontrei

os versos da trova indicada

por isso ainda não trovei...

Priscila de Loureiro Coelho.

---------------------------------

A trova que não fiz

por isso ainda não trovei

à espera da parceira

sem raínha sou um rei

com coração sem porteira...

Marco Bastos.

---------------------------------

ASSIM SERÁ - Regina Lyra

Com o coração sem porteira

Sem rei não sou rainha.

Sigo pelo caminho da ombreira

Instigo o momento da rinha.

--------------------------------