O PEQUENINO FLANELINHA



Estacionei o velho carango devagarinho sob a sombra entrevista ao lado da lanchonetezinha mal-acabada daquela estrada poeirenta à medida que o testemunhava afogueado pelos vulcânicos raios solares e muito bem ciente de que o radiador estava em petição de miséria de tanta água fervendo em seu interior, e deixei-me relaxar sobre o assento, a cabeça virada para trás como a temperar a coluna vertebral angustiada pela tensão da viagem iniciada em Natal. Estirei o olhar sobre a paisagem desolada da vizinhança, a claridão desembestada da tarde incipiente, no rosto franzido os óculos escuríssimos sem dar conta de tanto bilho no ar, no chão de barro seco, no negrume do asfalto e nas pedras da caatinga. Suspirei fatigado, as juntas do corpo enferrujadas, a mente esbaforida de tanto estresse no comando da direção, querendo colo e descanso. Vínhamos nós, eu e minha esposa, ao sabor do bafo quente do vento, queimando os pneus do velhusco escort na rodovia fumaçante, e nada se assemelhava mais a um oásis do que aquele pedaço de lugar longínquo, bem no oitão do mundo e meio que desmembrado de qualquer resquício de civilização, se bem fosse aprazível em tais circunstâncias, pelo menos a meu ver naquele embaraçante momento.

As coisas foram acontecendo, então, como se programadas para ser assim tão-logo chegássemos àquelas plagas tomadas de desencanto. Primeiro vieram as duas garotas com ar de timidez saltando à vista. Elas foram se achegando a pisadas de temerosos, na leveza de ansiosas borboletas se aproximando de prometedoras flores únicas, mas cautelosas e sensíveis aos possíveis impasses do desconhecido à frente. Ambas segurando balde, vermelho um deles, azul o outro, os dois cobertos por impecável paninho branco, elas como se gêmeas siamesas de tão juntinhas e passinhos iguais. Raquíticas em seus corpinhos miúdos, olhos a expressar a triste dormência dos pântanos solitários, total ausência de sorriso nas faces, encabuladas pela ousadia a que eram obrigadas, tartamudeantes, geladas de ansiedade. Deitaram sobre mim aqueles pares de olhinhos perecidos hà muito pela falta de alegria e, descobrindo os baldes num gesto autômato, ofereceram-me cocadas, no balde vermelho as brancas, no azul, as escuras. Umas de leite, outras de coco, a trinta centavos a unidade.

Senti meu coração tamborilar em silêncio ensurdecedor e eu quase emiti perceptível brado lamentoso ao vislumbrar as meninas e as cocadas no mesmo ângulo de visão toldada pela onda de melancolia a transbordar-me o peito. Voltei-me para minha esposa a buscar adjuntório ante tão constrangedora situação, e ela valeu-me de pronto ao sussurrar-me o propósito de não comprar aquelas gulodices de difusa origem, porém, apesar disso, seria de bom grado ofertar às duas uma prenda em forma de pecúnia para cada. Para não vê-las corroídas de decepção. Concordei aliviado por não ter de adquirir os tais doces produtos vendidos pelas pequenas pobrezinhas, mas, ao mesmo tempo, não deixá-las voltar à tristeza da recusa imperturbável. Por conseguinte, a elas demos o valor combinados em nossos olhares e lá se foram as duas levando suas cocadas para vender em outra freguesia realçada em mais dois carros vindo na nossa direção.

E quando nós já tentávamos respirar aliviados pela favorável solução da súbita pendência, dessas realmente inesperadas e abruptas, e pretendíamos, por fim, sair do carro que já estava a pegar fogo de tão quente no seu interior, veio ele em seguida, aquele toquinho de gente em forma de menino com desgrenhados cabelos amarelados pelo furor do sol, as pupilas esverdeadas como duas esmeraldas recém garimpadas na vau do rio, contudo magro de riso e de nutrição. "Boa tarde!", cumprimentou ele todo educado, numa das mãos uma flanela bem andada nos anos e carregada das poeiras esfregadas alhures, segurando um balde descolorido na outra. Também ele exibia o mesmo raquitismo apavorante e um enfastiado ar de precocidade espantosa. Pelos traços e semelhanças notei tratar-se do irmão das vendedoras de cocadas.

Atordoado e um tanto surpreso ante tamanho demonstrativo de polidez, respondi no mesmo tom, aguardando-o dizer-me a que vinha, embora, é obvio, eu imaginasse. A flanela e o balde o denunciavam. Ainda assim esperei a figurinha esboçar seu pensamento, o que logo aconteceu pois ele não se fez de rogado. "O senhor me permite limpar o pára-brisa do seu carro?" A interrogação lhe saiu dos lábios numa cadência simpática e controlada. Sem responder de imediato, voltei o rosto à minha esposa como sempre faço em situações semelhantes e vi em sua expressão o brilho de compreensão e cumplicidade tão inerente a nós dois quando o momento assim exige. Recado transmitido e compreendido pelo olhar, respondi positivamente e o tiquinho de gente subiu no pneu dianteiro do meu carro começando a executar a tarefa a que se propunha. " Hoje já ganhei mais de trinta reais", confidenciou-me o garoto quase à queima-roupa. Queria conversar, pensei. "Mas...você estuda?", indaguei. "Sim senhor, até já passei de ano com meus irmãos." "E seu pai, o que faz na vida?" Olhando-me bem nos olhos e ferindo-me com o verdume dos seus, respondeu-me: "Bebe!"

Deixei-o em paz na interlocução com seus fantasmas e enfrentei o ardor solar, preferindo essa agrura natural do que tornar a ouví-lo e às suas tristezas. As meninas das cocadas brancas e escuras nos baldes coloridos descansavam lá adiante com seus rostos entregues a devaneios; alguns viandantes entravam e saíam carregando queijo de coalho ou de manteiga, ovos caipira e água mineral; os ponteiros do relógio no meu pulso seguiam a entediante rotina. O tempo logo cumpriu seu papel. Quando voltei ao carro, verifiquei que o pequenino flanelinha havia feito um péssimo serviço, deixando mais fiapos no parabrisa do que limpando os traços da poeira da estrada. Ainda assim me enterneci, percebendo, por fim, não ser por sua obra que pagamos mas pela compaixão geralmente borbulhante n'alma dos que vão e vêm por ali ao vê-lo entregue à azáfama para a qual não tem o menor talento.
Todavia ele não sorriu nem mesmo quando recebeu o dinheiro. Apenas disse "obrigado!" e saiu correndo na direção de outro carro prestes a estacionar na sua área de trabalho.
Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 12/01/2009
Reeditado em 13/08/2010
Código do texto: T1380955
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.