Cegueira e talento
Os meus pés pisaram a poeira de muitos
caminhos.
Cego Aderaldo
Escrever sobre o Cego Aderaldo não é fácil, mas é gostoso. Digo que não é fácil porque sobre esse valoroso cantador cearense já foram escritas belíssimas páginas.
E eu pergunto: quem melhor escreveria sobre ele do que a Rachel de Queiroz? Provavelmente, ninguém.
Atrevo-me a dizer tal coisa depois de ler, pela enésima vez, o artigo da autora de O Quinze, publicado na revista O Cruzeiro, de 31 de outubro de 1959.
Mais recentemente, em 1962, outro artigo da romancista alencarina sobre o cantador, desta vez apresentando ao Brasil seu livro Eu Sou o Cego Aderaldo.
Não transcrevo trechos dos artigos que apontei, na inabalável crença de que aqueles que gostam da boa literatura do Nordeste, a esta altura, já os terão lido.
Existem, claro, dezenas de escritos falando sobre a vida e a poesia de Aderaldo Ferreira de Araújo. Nem todos, poderia assegurar, têm a simplicidade sertaneja que engalana os textos de Rachel.
*** *** ***
Aderaldo, cego e talentoso, foi o que eu quis dizer com o título que dei a esta crônica ; uma crônica bem regional; do meu velho Ceará.
Já escrevi crônicas sobre o padre Cícero Romão Batista, sobre Iracema e José de Alencar, sobre o Dragão do Mar, sobre o padre Ibiapina, sobre Jáder de Carvalho, sobre Patativa do Assaaré e até sobre São Francisco de Canindé.
O Poverello não é cearense; mas escolheu o Ceará para fazer milagres, transformando-o no estado mais franciscano do Brasil.
Faltava, pois, uma palavrinha sobre o Cego Aderaldo.
Não que tenha a petulância de trazer para esta crônica coisas novas sobre esse iluminado vate do povo, nascido na cidade do Crato, no dia 24 de junho de 1878. Tudo sobre ele já foi (bem) dito.
Meu objetivo não é outro senão o de insistir na tese de que a cegueira não aniquila o cidadão, colocando o deficiente visual, de maneira inapelável e irreversível, à margem da sociedade a que ele pertence e serve.
O Cego Aderaldo é um exemplo de superação - não sei se este é o termo certo - e vou dizer por quê.
Ele não nasceu cego. Como disse Rachel, "ele perdeu a luz dos olhos" em março de 1896. Tinha 18 anos. A cegueira que lhe fechou os olhos para sempre, podia tê-lo feito mergulhar numa profunda e irrecuperável depressão.
Leve-se ainda em conta que, naquela época, não havia, na sua terra, entidades cuidando do deficiente visual; como faz hoje, por exemplo, a Sociedade de Assistência aos Cegos, mui bem dirigida por Josélia Almeida.
Diante da tragédia, ele reagiu com galhardia e coragem.
Conta-se - e ele acolheu a versão - que já cego, ele sonhou que era um cantador. A partir desse sonho, tomou da sua rabeca, e passou a versejar, aceitando participar de desafios de violeiros famosos.
E lá se foi ele, Brasil afora, conquistando a todos com a riqueza dos seus poemas, rumo à imortalidade.
Não casou. Mas, praticando uma elogiável e concreta obra social, adotou 26 crianças carentes, e lhes deu vida digna e saber.
Se recusou a sair pelo mundo pedindo esmola; não apelou para a caridade pública. Nasceu e morreu pobre.
Confiante no seu talento, descobriu, disse Rachel de Queiroz, "que carregava um poeta dentro do peito". E usou o seu talento para ganhar o pão de cada dia.
"A dona Fome me olhou
E disse a mim: - Eu te pego!
Eu lhe disse: Não senhora!
Eu sei por onde navego,
Quem tem vista corre logo,
Quanto mais eu sendo cego."
Conta-se, também, que certa feita, sem dinheiro, compareceu a um encontro, no Juazeiro do Norte, no qual estavam presentes o padre Cícero, Floro Bartolomeu e o temido Lampião. Lá pras tantas, a pedido do cangaceiro, improvisou:
"Existem três coisas
que se admira no sertão:
o cantar de Aderaldo,
a coragem de Lampião,
e as coisas prodigiosas
do padre Cícero Romão."
De Lampião, agradecido, teria recebido alguns vinténs; verba suficiente para pagar o funeral de sua mãe, dona Olímpia, que morrera em meio a mais desoladora penúria.
Diria, para fechar está página, que sua biografia é toda ela tecida a partir de sua poesia; como, aliás, acontece com os bons aedos.
O Cego Aderaldo morreu em Fortaleza, no dia 29 de junho de 1967. Bem velhinho...
"Ah! Se o passado voltasse!
Meu Deus, que felicidade!
Ver o que já vi no mundo
Que só me resta a saudade,
Ainda achava um tesouro
Que perdi na flor da idade."
Teve, pois, saudade do tempo em que enxergava.
E por que nâo? Mas, como o assum preto do Luis Gonzaga, cego, ele cantou melhor...
Os meus pés pisaram a poeira de muitos
caminhos.
Cego Aderaldo
Escrever sobre o Cego Aderaldo não é fácil, mas é gostoso. Digo que não é fácil porque sobre esse valoroso cantador cearense já foram escritas belíssimas páginas.
E eu pergunto: quem melhor escreveria sobre ele do que a Rachel de Queiroz? Provavelmente, ninguém.
Atrevo-me a dizer tal coisa depois de ler, pela enésima vez, o artigo da autora de O Quinze, publicado na revista O Cruzeiro, de 31 de outubro de 1959.
Mais recentemente, em 1962, outro artigo da romancista alencarina sobre o cantador, desta vez apresentando ao Brasil seu livro Eu Sou o Cego Aderaldo.
Não transcrevo trechos dos artigos que apontei, na inabalável crença de que aqueles que gostam da boa literatura do Nordeste, a esta altura, já os terão lido.
Existem, claro, dezenas de escritos falando sobre a vida e a poesia de Aderaldo Ferreira de Araújo. Nem todos, poderia assegurar, têm a simplicidade sertaneja que engalana os textos de Rachel.
*** *** ***
Aderaldo, cego e talentoso, foi o que eu quis dizer com o título que dei a esta crônica ; uma crônica bem regional; do meu velho Ceará.
Já escrevi crônicas sobre o padre Cícero Romão Batista, sobre Iracema e José de Alencar, sobre o Dragão do Mar, sobre o padre Ibiapina, sobre Jáder de Carvalho, sobre Patativa do Assaaré e até sobre São Francisco de Canindé.
O Poverello não é cearense; mas escolheu o Ceará para fazer milagres, transformando-o no estado mais franciscano do Brasil.
Faltava, pois, uma palavrinha sobre o Cego Aderaldo.
Não que tenha a petulância de trazer para esta crônica coisas novas sobre esse iluminado vate do povo, nascido na cidade do Crato, no dia 24 de junho de 1878. Tudo sobre ele já foi (bem) dito.
Meu objetivo não é outro senão o de insistir na tese de que a cegueira não aniquila o cidadão, colocando o deficiente visual, de maneira inapelável e irreversível, à margem da sociedade a que ele pertence e serve.
O Cego Aderaldo é um exemplo de superação - não sei se este é o termo certo - e vou dizer por quê.
Ele não nasceu cego. Como disse Rachel, "ele perdeu a luz dos olhos" em março de 1896. Tinha 18 anos. A cegueira que lhe fechou os olhos para sempre, podia tê-lo feito mergulhar numa profunda e irrecuperável depressão.
Leve-se ainda em conta que, naquela época, não havia, na sua terra, entidades cuidando do deficiente visual; como faz hoje, por exemplo, a Sociedade de Assistência aos Cegos, mui bem dirigida por Josélia Almeida.
Diante da tragédia, ele reagiu com galhardia e coragem.
Conta-se - e ele acolheu a versão - que já cego, ele sonhou que era um cantador. A partir desse sonho, tomou da sua rabeca, e passou a versejar, aceitando participar de desafios de violeiros famosos.
E lá se foi ele, Brasil afora, conquistando a todos com a riqueza dos seus poemas, rumo à imortalidade.
Não casou. Mas, praticando uma elogiável e concreta obra social, adotou 26 crianças carentes, e lhes deu vida digna e saber.
Se recusou a sair pelo mundo pedindo esmola; não apelou para a caridade pública. Nasceu e morreu pobre.
Confiante no seu talento, descobriu, disse Rachel de Queiroz, "que carregava um poeta dentro do peito". E usou o seu talento para ganhar o pão de cada dia.
"A dona Fome me olhou
E disse a mim: - Eu te pego!
Eu lhe disse: Não senhora!
Eu sei por onde navego,
Quem tem vista corre logo,
Quanto mais eu sendo cego."
Conta-se, também, que certa feita, sem dinheiro, compareceu a um encontro, no Juazeiro do Norte, no qual estavam presentes o padre Cícero, Floro Bartolomeu e o temido Lampião. Lá pras tantas, a pedido do cangaceiro, improvisou:
"Existem três coisas
que se admira no sertão:
o cantar de Aderaldo,
a coragem de Lampião,
e as coisas prodigiosas
do padre Cícero Romão."
De Lampião, agradecido, teria recebido alguns vinténs; verba suficiente para pagar o funeral de sua mãe, dona Olímpia, que morrera em meio a mais desoladora penúria.
Diria, para fechar está página, que sua biografia é toda ela tecida a partir de sua poesia; como, aliás, acontece com os bons aedos.
O Cego Aderaldo morreu em Fortaleza, no dia 29 de junho de 1967. Bem velhinho...
"Ah! Se o passado voltasse!
Meu Deus, que felicidade!
Ver o que já vi no mundo
Que só me resta a saudade,
Ainda achava um tesouro
Que perdi na flor da idade."
Teve, pois, saudade do tempo em que enxergava.
E por que nâo? Mas, como o assum preto do Luis Gonzaga, cego, ele cantou melhor...