DEMAGOGIA, MANIQUEÍSMO, PERIGO ANTI-DEMOCRÁTICO
DEMAGOGIA,
MANIQUEÍSMO, PERIGO ANTI-DEMOCRÁTICO
Paulo Ferreira da Cunha
1. Falta de diálogo e, naturalmente, de consenso
Ouvimos há pouco uma crónica do escritor António Alçada Baptista (recentemente falecido) num programa de rádio, em que ele se dizia descrente do consenso. Fora dele inicialmente muito entusiasta, mas passara a descrer. E conta com muita graça e subtileza a história de um padre do colégio em que andara a quem, contra todas as evidências (mesmo uma ida à Alemanha em que fora revistado ignominiosamente), dera na cabeça, já na senilidade, para ser nazi. Até os maus tratos na fronteira foram para ele sinal de eficiência...
Alçada Baptista tem razão até certo ponto. Quando uma das partes teima (ou quando duas ou mais teimam), não pode haver diálogo verdadeiro, quanto mais consenso.
Estamos a ficar uma sociedade muito extremada, crispada. Os moderados são vistos de soslaio. Tudo tem de ser preto ou branco. "És morno, vomito-te". - Diz não sei que passagem bíblica. Mas por vezes não pode ser tudo quente ou tudo frio...
Pois é. Alguém disse também que as sociedades só valem pelos extremistas, mas só se conservam pelos moderados.
E a moderação – sublinhe-se - não significa meias tintas. Em muitos casos, significa horror à demagogia das soluções e das propostas fáceis como são todas as propostas e soluções maniqueístas.
2. Demagogia, falta de capacidade interpretativa (e de sentido de humor)
A demagogia está a tomar conta da opinião pública, melhor, da opinião que se publica.
Por exemplo, o caso da bandeira nazi no Parlamento da Madeira (para não falar das críticas injustas e desbragas a todos os governos, a todos os parlamentos e a todos os tribuanais) deu ensejo a algumas poucas intervenções lúcidas, mas a muita falta (sequer) de bom senso e capacidade de interpretação. Também os processos de intenção contra os "gato fedorento", julgando que atacavam a Igreja Católica quando na verdade sobretudo criticava (divertidamente: até é boa propaganda) as acções de formação para professores do computador Magalhães, ao que parece já de si bastante animadas. Em Portugal há uma clamorosa falta de sentido de humor, da subtileza, da ironia. Como já lamentava outro grande ensaísta também não há muito desaparecido, Eduardo Prado Coelho.
3. Sensacionalismo dos Media, procura de bodes expiatórios
Esquece-se frequentemente quem é o "inimigo principal". Dão-se tiros em todas as direcções e alguns tiros no pé. Alguns políticos de primeiro plano têm-se especializado nisso de uma forma competentíssima.
Os meios de comunicação social estão cada vez mais sensacionalistas. E muitos andam à procura de bodes expiatórios.
No Porto, e bem antes da crise em Gaza, um café (propriedade de quem não tem uma pinta de sangue judeu nem professa a fé judaica: disseram-me que eram brasileiros, e negros...e que não fossem!) ostentava, discreto até, o nome de uma cidade israelita. Logo zelosos neo-nazis aprendizes foram pintar a suástica na montra, e escrever em alemão (grande nacionalismo!): "Fora Judeus!". O café parece que fechou de medo... Pudera! Ali ao lado, uma loja viu a sua montra repetidamente arrombada... e não tinha nome judaico, antes soava (mera coincidência, será preciso dizer?) a alemão... Mas nenhuma inscrição sofreu, obviamente... Os ladrões são mais civilizados. Atacam de forma mais limpa.
Outros dizem que a culpa é dos partidos, dos deputados, deste ou daquele grupo... Há alvos fáceis, tradicionais...
Os democratas têm o dever de defender as suas instituições, de justificar o labor dos Parlamentos (particularmente vulneráveis para a massa inculta presa fácil do populismo), de ser um escudo de defesa de minorias que podem ser trucidadas pelo vandalismo dos recalcados.
4. Maniqueísmo, perigo anti-democrático
Andamos demasiadamente distraídos, mas "eles aí estão outra vez".
Cuidado com os maniqueísmos. Cuidado com as demagogias. Atenção às divisões internas entre os democratas. Elas naturalmente podem e devem existir, em pluralismo. Mas há divisões e formas de as afirmar que só levam água ao moinho dos que gostam de unanimismos sem rosto: ou com um só rosto – o do ditador.
Sabemos que é também um problema de qualidade: quando os políticos e as ditas elites têm entre si abismos de formação e de inteligência, pode acontecer que uns se irritem verdadeiramente com os outros.
Pode ser que ainda se tenha de defender a democracia de forma mais efectiva e afirmativa. Há que estar preparado. Não fazemos profecias nem temos dados concretos: apenas lemos nas estrelas da agitação social... e do rancor anti-democrático de alguns. Que estão a crescer. Não, como é óbvio, como perigo eleitoral – isso seria uma contradição nos próprios termos da sua existência. Os anti-democratas são por natureza poucos que arrastam, em momentos nevrálgicos, muitos. Basta que sejam uns tantos, organizados e decididos, para a democracia ter de se deixar de triunfalismos inconsistentes e dever pensar em defender-se. Desde logo, dando razões aos menos advertidos para a amarem. Esse é o melhor antídoto.
Se não fosse a nossa integração institucional na Europa, poderia haver maiores tentações... é certo. Mas, mesmo assim, pode haver muitas agressões, assaltos, enxovalhos, calúnicas, etc. E o sensacionalismo de alguns "media" rejubila quanto mais insulto e sangue correr.
Quem tiver lido os comentários às notícias no SAPO, na Internet começará a entender. Quem tiver estômago, leia duas ou três, ao acaso. Ora, perante tanto acefalismo e tanta verrina, tanto veneno, tanto ódio, das duas, uma: ou há grupos apostados em afundar o moral do país, e propagam esses "postais" de raiva, impropério, descontentamento ao rubro, revolta mesmo... de forma sistemática, ou então há fatias preocupantes da população... que talvez não votem até, mas pesam no mal estar social. Porque o que dizem na blogsfera dirão na rua, no mercado, no emprego...
5. Necessidade de uma resposta democrática
Pensemos nisso. A democracia portuguesa tem de dar uma resposta positiva. Não podemos, em tempos de crise, permitirmo-nos que muitos sectores sociais declaradamente sintam que os “Salazares” é que seriam bons.
E aí há um trabalho imenso a fazer sobretudo junto dos jovens e dos jovens universitários em especial – cuidando das futuras elites. Ao contrário de alguns, sem deontologia e sem pudor, cremos que um professor tem o dever de (sem a hipocrisia de se fingir asséptico) manter a independência e não fazer qualquer tipo de doutrinação ou proselitismo junto dos seus estudantes. Ou será que poderemos chegar a um ponto que o verniz terá que quebrar-se, e virá ao de cima a radical oposição entre os que querem a liberdade e os que maquinam a repressão, entre as mentes livres e as mentes enclausuradas, os que querem o progresso e os que desejam o passado?
Mas não pode ficar entretanto a democracia desarmada, sobretudo desarmada ideologicamente, quando cresce o saudosismo. Os nossos jovens já nasceram depois do 25 de Abril... não tendo padrões para cotejo. Com a incultura geral e histórica que as nossas escolas teimam em perpetuar, acham que Otelo Saraiva de Carvalho, o estratego da Revolução dos Cravos, é um Hotel de luxo... Como se viu em entrevista na televisão. Para nossa geral vergonha.
As juventudes partidárias dos partidos democráticos onde estão? A elas cabe, cremos nós, algum papel.
E acima delas, aos jovens democratas sem filiação partidária.
De onde vem a ingenuidade segundo a qual, uma vez alcançada a democracia (e ainda assim imperfeita, técnica, superestrutural), deixou de haver inimigos da democracia?
Só pode advir do cansaço dos democratas, do seu acomodamento, ou da falta de cultura histórica.