Choque de ordem

O menino entra correndo barraco adentro e se esconde no pequeno banheiro, com os olhos arregalados, coração quase saindo, e fica lá, entre o vaso e o minúsculo box.

— O que foi, menino? — Pergunta a mãe mais assustada que o menino.

— O Choque de ordem, mamãe! Vão derrubar os barracos e mandar a gente pra longe daqui. Vão matar a gente, mamãe. Eu não quero sair daqui, eu não quero. — E começa a chorar.

— Que história é essa, menino? Aqui quem manda é a milícia. Prefeitura manda nada aqui não. — Responde a mãe, tentando acalmar o menino.

— Mas eles derrubaram o barraco do Magrinho. A polícia ta lá fora, botando todo mundo pra correr; descendo o cacete a torto e a direito.

A mãe joga o avental em cima da pia engordurada, esfrega as mãos na barra da saia imunda, dá uma ajeitada no cabelo e se dirige à janela enquanto o menino treme sentado na tampa do vaso.

Lá fora a pancadaria come solta. Policiais e moradores trocam socos e pontapés; mulheres gritam, choram, xingam policiais; meninos jogam pedras, correndo de um lado para o outro, soltam pipas e rojões alertando a rapaziada de que a polícia está na área. Botequins baixam as portas; a pequena igreja local encerra o culto; o DJ do baile funk incita a população contra o choque de ordem... o inferno abre as portas. Sprays de pimenta são lançados contra moradores; moradores fecham ruas, incendeiam carros e pneus.

Da janela a mãe observa tudo calmamente. A favela. A velha e boa favela em mais um dia de rotina. Só mudou o nome: Choque de ordem. Não haverá mais gatos na luz, na água nem na net. Não haverá mais vans nem botijões de gás a preços exorbitantes. Não haverá mais lojas nem botequins ilegais. Tudo regularizado. As ruas serão asfaltadas. Todos terão escola e saúde dignas. A favela virará uma nova Zona Sul: sem bagunça, sem irregularidades. Sem esgoto a céu aberto, sem toneladas de fios em postes de madeira. A nova Canaã.

A mãe volta até o filho:

— Vai dormir, menino. Não se preocupe. Nada vai mudar. Se eles acabarem com a pobreza quem vai trabalhar pra eles, pagar impostos pra sustentar essa corja toda?

Mesmo sem entender muito o que a mãe estava falando, o menino se levantou e foi se deitar. E a mãe também. Afinal, já estava acostumada a isso: alguém tem que levar a culpa.

Poeta do Riacho
Enviado por Poeta do Riacho em 09/01/2009
Reeditado em 12/01/2009
Código do texto: T1376287