Uma GRANDE Lição
É interessante como situações pelas quais não estamos acostumados a passar, podem nos abrir os olhos para duras realidades, que precisam ser percebidas.
Outro dia, eu acordei às 04h45m da manhã, com ruídos vindos do quintal. Parecia que havia algum problema com meus cães. Tenho um lindo casal de vira-latas. Levantei num pulo só e fui lá fora me certificar do problema. Quando cheguei, vi meu cachorro atacando um gatinho de rua. Sem pensar duas vezes (porque nestas situações, eu nunca penso), fui separar a briga. Felizmente consegui livrar o gatinho do pior, mas a criaturinha, agitada e assustadíssima, com o rebuliço, acabou mordendo a minha mão. Nem pude fazer nada. Peguei o pobrezinho, corri para dentro de casa e o soltei num quartinho vazio que tem aqui. Foi quando percebi minha mão latejando de dor. Era uma dor muito forte. Lavei a mão com sabonete neutro, esfreguei bem, mas sangrava e doía muito. Quem já foi mordido por gato sabe como é. Bem, parou de sangrar e fui verificar o estado do gato. Vi que era um jovem gatinho de mais ou menos 5 ou 6 meses. Ele estava muito assustado e arredio, não deixava ninguém chegar perto. E ninguém se atrevia. Então, fiquei sozinha com ele no quarto e aos pouquinhos, fui me aproximando, devagar. Levou uns 15 minutos, mas conseguir pegá-lo no colo para ver se ele estava machucado. Ele estava bem, apenas molhado por causa da chuva. Dei leite e ração para ele e voltei minha atenção para a minha mão. Nossa, estava inchada e continuava doendo. Foi quando lembrei que não estava com as vacinas anti-rábica e antitetânica em dia.
No outro dia, fui para a Universidade e todos me disseram “vá tomar as vacinas, é perigoso!”. Eu tenho plano de saúde e sempre que preciso vou ao meu Hospital, que é particular. Mas estava a pé e do outro lado da rua tem um posto de saúde do SUS, então não perdi tempo e fui lá. E aqui começa o motivo real de minha crônica.
Assim que entrei no local, vi um rapaz lavando o chão, de cimento, enquanto todos passavam pra lá e pra cá. As paredes descascadas e o mau cheiro compunham um cenário quase repugnante. Fui até o balcão e a mulher indiferente que me atendeu, solicitou minha carteira de identidade e preencheu uma ficha. Indicou o caminho que eu deveria seguir e me despachou. Então fui seguindo o trajeto informado e durante o percurso, confesso que vi coisas nem um pouco agradáveis. Não se tratava de moribundos, acidentados ensangüentados ou doentes terminais. Nada disso. Eram casos simples, mas que me transmitiram um sentimento que eu nunca tinha sentido quando em minhas visitas ao meu hospital regular. Eram pessoas com semblantes sofridos que, juntamente com as estruturas precárias do prédio, transmitiam um leve mal estar. Senti-me um peixe fora d’água e ao mesmo tempo me senti culpada por temer aquele lugar. Continuei caminhando e cheguei ao local certo. Tinha uma fila não muito grande e entrei nela. Mas ao lado havia outra fila, com pessoas destinadas a outra tipo de atendimento. Havia uma senhora numa espécie de cadeira de rodas, que mais parecia uma estrutura enferrujada de metal com rodas. A velhinha parecia extremamente desconfortável ali e sua expressão era de profunda tristeza, se não dor, quem sabe. A mulher que a acompanhava devia ser parente, não sei. Havia também um menininho sentado no chão, cansado de ficar em pé e sua mãe ficava dizendo: “Levante desse chão sujo!”. Tinha também um homem de meia idade com muletas e várias outras pessoas, amontoadas naquele lugar fétido e barulhento. Não parecia um hospital, parecia uma feira. Bebês chorando e pessoas falando alto. Eu desejava ficar desapercebida e fiquei acuada em meu canto, observando aquelas cenas que nunca antes tinha presenciado. Fui me sentindo muito mal e juro que quase desisti da vacina. Foi quando, sinceramente, não sei o motivo, meus olhos se encheram de lágrimas e uma delas desceu pelo meu rosto. Foi uma sensação chata e pouco perturbadora que senti. Mas pensei que seria covardia minha fechar os olhos para uma realidade que sempre estivera tão perto de mim e ir embora. Aquela experiência não me mataria, mas serviria para reflexão e aprendizado. Então, fiquei. Quando chegou a minha vez, um médico ríspido, sentado atrás de sua mesa, me atendeu com a frieza de um técnico em computação que avalia um computador. Não me lembro de ele ter olhado nos meus olhos. Contei-lhe a história, ele me receitou vacinas e um remédio para dor e me mandou para a sala de vacinação. Sua má vontade era irritante. E lá fui eu, outra vez. Uma mulher me atendeu, e foi a primeira vez que vi alguém sorrir naquele hospital. Ela era agradável e simpática. Tirei minhas dúvidas com ela, tomei a dolorosa injeção antitetânica e a menos chata anti-rábica e fui embora, segui meu caminho para fora do prédio.
Bem, pode parecer uma grande bobagem e alguns podem pensar: “Que drama!”. Mas eu nunca tinha precisado entrar num hospital público e quando vemos pela televisão as reportagens sobre o caos da saúde pública, nos sensibilizamos e ficamos revoltados, mas ao vivo é outra coisa. Para quem está inserido neste mundo, ou seja, as pessoas pobres (porque não há definição melhor), aquele tumulto perturbador é normal. Eles nunca tiveram a oportunidade de conhecer algo melhor para eles. Não têm tratamento digno e atendimento adequado, com instalações higiênicas e modernas. Eles não sabem o que é isso. Tenho certeza que se, por um dia, tivessem a chance de viver como alguém de classe média e ir a um hospital particular, se sentiriam igualmente um peixe fora d’água e pensariam: “Que injustiça!” e o mesmo sentimento de revolta os tomaria. É uma dura realidade. Mas o que me fez pensar mais ainda foi o fato de que não moro numa grande metrópole, como Rio de Janeiro, São Paulo, ou Recife. Eu moro em Petrópolis, no interior do Rio de Janeiro, onde tudo é menor e menos intenso. Fico imaginando a gravidade do problema em imensos hospitais públicos em periferias de cidades grandes. Deve ser o verdadeiro inferno na Terra!
Sinceramente, refleti muito e cheguei a diversas conclusões. Uma delas é esta, a desigualdade social no Brasil, decorrente da má distribuição de renda, do desemprego e da escassez de escolas e universidades públicas com justas oportunidades para a qualificação de pessoas menos favorecidas. É uma cadeia de grandes problemas independentes, porém interligados. Muito triste e desanimador saber que, para uma pequena mudança neste aspecto, tanto deve ser feito e quase nada é.
Outra conclusão que obtive é que, antes de reclamar por qualquer mísero problema em nossas vidas, devemos olhar ao nosso redor, perceber e agradecer por tudo que temos. Seja bens materiais ou apoio familiar. Milhares gostariam de trocar de problemas conosco e se estivessem em nosso lugar, sorririam para estes problemas e tirariam de letra. E nós, acostumados com “boa vida”, iríamos nos desesperar e enlouquecer vivendo como aquelas pessoas, que nada têm. Sei, por experiência própria, que é errado subestimar os problemas alheios, mas não podemos achar justiça em comparar o aborrecimento do carro que quebrou na estrada, durante as férias, com o sofrimento de uma mãe que tem que dormir 3 dias consecutivos na fila de um hospital para conseguir atendimento para o filho com dengue.
A verdade é que, por causa de um gatinho em apuros, eu tive a oportunidade de ver de perto algo que já sabia e realizar uma profunda reflexão, sincera e revoltante, mas real. Pretendo me lembrar desta situação sempre que estiver aborrecida com algum problema ínfimo. Entendo perfeitamente que é um assunto clichê, objeto de inúmeros e-mails que recebemos diariamente sobre compaixão, solidariedade e amor, mas compartilho com meus pacientes leitores esta verdadeira história, com a pretensão de abrir suas mentes para esta realidade injusta, que envolve não só sentimentos, mas também política, legislação e comodismo. Não sejamos tão egoístas e irresponsáveis. Vamos nos preocupar mais com quem colocamos no poder, pois nossos líderes políticos são os únicos com real poder para mudar esta situação e nós, cidadãos, temos o poder de coloca-los no poder. Tudo depende de nós. Portanto, voto consciente, interesse social, honestidade e compaixão podem mudar nosso belo País.
- Desculpem-me pela extensão do texto, que pode ter se tornado até cansativo, mas tentei exprimir meus pensamentos de maneira objetiva e diferente para vocês.
08 de Janeiro de 2009